segunda-feira, 18 de junho de 2012

NOVO ROMANCE DE CARLOS CORREIA SANTOS É LANÇADO NO IAP

Livro é protagonizado por personagem negra que cruza com personalidades reais, numa poética costura de fatos históricos do Nordeste e da região Norte.

O romance “Senhora de Todos os Passos”, do escritor Carlos Correia Santos foi um dos vencedores do Prêmio IAP de Edições Literárias 2011 (Prêmio Haroldo Maranhão). A obra será lançada no próximo dia 22 de junho, a partir das 19h, no Instituto de Artes do Pará. O livro conta a saga da ousada e espirituosa Maria Xavier, personagem inspirada na avó do autor, uma nordestina que, segundo Correia, fez o anti-êxodo. “Numa época em que a maioria do povo do Nordeste partia rumo ao Sudeste, ele rumou para o Norte. Foi uma mulher fantástica, que teve uma vida cheia de lances espetaculares. Testemunhou o voo do Zepelim, viveu a comoção do assassinato de João Pessoa, esteve perto do universo do cangaço. Foi muito rica e extremamente pobre. Cresci ouvindo as narrativas fabulosas que ela contava. E, justamente por isso, tornei-me escritor. Prometi que, um dia, transformaria os incríveis passos dela em um romance e, para minha grande honra, agora cumpro a promessa”, afirma, emocionado.

A narrativa faz um imenso passeio por episódios importantes da História nordestina e nortista. Do Recife dos anos 20, passando pelas ladeiras de Olinda na década de 50, até o barro da Transamazônica dos idos de 1970, seres fictícios e várias personalidades reais cruzam o infindável caminho de Maria Xavier. Correia transforma em personagens do livro figuras como Bajado, Catulo da Paixão Cearense, Irmã Dulce, Corisco, Dadá, Dulcina de Moraes e até Dorothy Stang. “O enredo vai misturando realidade e fantasia. Exatamente como fazia minha avó. É bem aquilo de contar um conto aumentando os pontos”, diverte-se Carlos. Mas ele completa: “Há, porém, muitas vivências de fato experimentadas por minha família. Uma família de negros pernambucanos que tiveram que lutar muito para que a sorte se transformasse e as coisas pudessem melhorar. É uma obra que respira e transpira muitas dores e alegrias reais”.

Esta é a terceira vez que Carlos ganha o Prêmio IAP. Em 2003, ele venceu a categoria dramaturgia com o texto da peça “Nu Nery” (cuja montagem já foi apresentada em Recife, graças à Caravana Funarte Petrobras de Circulação Nacional). Em 2008, outra peça sua foi laureada: o texto “Batista”. “Senhora de Todos os Passos” é o segundo romance escrito por Correia. O primeiro, “Velas na Tapera”, venceu o Prêmio Dalcídio Jurandir, promovido pela Fundação Cultural Tancredo Neves, em 2008, e foi lançado em Lisboa, no último mês de junho.

CONQUISTAS

Os últimos anos têm sido produtivos para Correia. Além do recente prêmio do IAP, de ter lançado “Velas na Tapera” em Portugal, na FNAC Chiado (o escritor é representado na Europa pelos produtores Fercy Nery e Rita Pestana), de ter duas peças suas apresentadas com bastante êxito em São Paulo (“Perfídia Quase Perfeita” e “A Fábulas das Águas”, montadas pela Cia. Fé Cênica) e de ver outros dois espetáculos seus recentemente montados com grande receptividade em Belém (“Acorde Margarida” e “Batista”) Correia conquistou o segundo lugar geral da quarta edição do concorrido Seleção Brasil em Cena, edital de fomento à nova dramaturgia brasileira, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (CCBB). Carlos foi o único autor da região Norte escolhido para o projeto. O certame selecionou também um escritor do Nordeste. Os demais foram das regiões sul e sudeste. A obra com que Carlos Correia foi destacado é o monólogo “Um é Multidão”. Essa foi a segunda vez que o paraense participou da iniciativa. Em 2007, o escritor também foi selecionado para o concurso justamente com sua comédia “Perfídia Quase Perfeita”.

Criado para propiciar o contato do público com novas dramaturgias e estimular o intercâmbio entre autores, atores e diretores contemporâneos, o Seleção Brasil em Cena permite com que os 12 textos selecionados em cada edição ganhem leituras dramáticas dirigidas por grandes nomes da atual cena teatral brasileira. O texto de Correia foi dirigido por Gilberto Gawronski, ator e diretor vencedor de importantes prêmios, como o Mambembe e o Sharp. Em 2007, a obra do nortista foi dirigida por Stella Miranda, que viveu a síndica do humorístico Toma Lá Dá Cá, exibido na Rede Globo. Apresentadas no próprio CCBB Rio, as leituras dramáticas foram realizadas por alunos formandos em escolas de teatro da capital carioca. Ao final de cada leitura, o público atribuiu notas. Os espectadores deram a Correia o segundo lugar geral na competição.

EUROPA

A literatura é bandeira capaz de estreitar fronteiras. E Carlos Correia Santos pode comprovar isso em sua estada no continente europeu em 2011. Seu livro “Velas na Tapera” foi lançado em Lisboa junho daquele ano em um evento realizado na FNAC Chiado, com o apoio da Embaixada do Brasil em Portugal. Parte integrante do projeto “Recital Mais Brasil: Da Amazônia para o Mundo”, criado pelo produtor cultural e músico Fercy Nery (representante de Correia no território lusitano, ao lado da pesquisadora Rita Pestana, antropóloga e membro da direção do Núcleo de Lisboa da associação EpDAH), a programação contou com declamação de poemas de Carlos ao som de clássicos do cancioneiro brasileiro e sessão de autógrafos do romance. A execução musical esteve a cargo do próprio Nery e do baterista pernambucano Attila Argay. A sala que acolheu a programação ficou lotada e a apresentação foi aplaudida de pé. A obra passou, então, a figurar na prateleira dos destaques da livraria da FNAC Chiado.

Após o evento na FNAC, Correia seguiu viagem por Espanha, Itália, França, Bélgica, Suíça e Áustria, realizando pesquisas para novos romances e, no final de junho, retornou a Lisboa para mais dois eventos. No dia 30, participou de um jantar especial realizado na sede do Centro InterculturaCidade, dirigido por Mário Alves, membro da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local (Animar). No encontro, Correia falou sobre sua obra, sobre as peculiaridades culturais da Amazônia e firmou contato com artistas europeus e africanos, como o célebre ator e dramaturgo português Helder Costa (autor de espetáculos teatrais já montados em diversas cidades do mundo) e o cantor e compositor angolano Gonçalves Correia, o Chalo.



TRECHO DO ROMANCE

“SENHORA DE TODOS OS PASSOS”



(...) Como renasci? Dos confetes, serpentinas, sacudidos de pernas e braços. Do ter que ir. Oxi, mais que tudo, negra nordestina entendi-me, ora pois. Fiz do já ido poeira. Do ódio, fogo. E segui.

Sinto de novo o peso da trouxa de roupa sobre o juízo...

Gargalho.

Eita, peste! Dá para escutar? Ponha-se reparo! Ó!... Vôtes!... Dá para escutar não? Espia só: é o frevo! É Carnaval. Saudade tanta... Carnaval em Olinda naqueles idos era já estirão de festa num mar de cores. Alegorias e criaturas de todas as cores. Um mar até maior que o das praias do Carmo e dos Milagres. Pulos de caboclinhos na marcação das preacas, a fazer estalar as setas contra os arcos. Tão lindos caboclinhos com seus cocares, saias e adereços feitos com penas de avestruz e pavão. Pulavam os caboclinhos. Pulavam as cores dos maracatus rurais. O fabuloso excesso de detalhes, panos e tons dos tão brabos e tão poéticos caboclos de lança. Suas evoluções, as fitas dançando no ar. O mistério dos palhaços mascarados, a traquinagem das almas. Cores para danar! Pulos, cantorias, muita gente nas ruas. Gente feliz. Eu idem.

Com a trouxa de roupa lavada em cima da cabeça, eu descia a ladeira da Prefeitura misturada à abençoada promiscuidade do carnaval olindense. Ia na correnteza do bloco criado pelos meninos do Amparo e dos Quatro Cantos. Pitombeiras. Ê, gota serena. Coisa boa de lembrar. Eu ia. Os clarins fazendo meu sangue arder de vontade. Queixo erguido, muito mulher, muito senhora, equilibrando o peso do meu esforço sobre o quengo. Equilibrar uma ruma de roupa engomada em meio ao frevo? Uma ciência da qual só as fêmeas de muita labuta – pernambucanas legítimas – são professoras.

E, assim, eu ia. Toda digna de mim mesma. Vestido de rendas e brocados? Não mais. Naquele então, a saia rodada e a blusa com manga de coco que os poucos tostões me permitiam comprar. Coisa muito mais modesta que as peças sustentadas pelos pixains. Agora não mais coroa de pixains. Apenas perfumada maçaroca, presa por tiras.  Esmeraldas e rubis como enfeites? Fim disso. Somente em cada orelha as argolas douradas compradas com o suor de muito joelho esfolado em faxina de chão e muita mão rachada por sabão em pedra. 

Com a trouxa na cabeça, eu descia a ladeira capturada pelo agudo dos instrumentos da fuzarca. Eu podia ter evitado a troça? Até sim. Mas não resisti. Emburaquei na multidão. Ainda tinha muito a fazer no dia, mas resisti qual o quê!

Já que era parte do caminho mesmo para o Convento de Santa Teresa, fiz do rumo do bloco o meu também, né, não? Oxi, com o peso dos panos aprumado pelo toitiço, eu tinha que me conter um tiquinho, mas ia sacudindo os peitos.

Num manso, rio.

Junto, ao redor, por todo lado, rostos do meu folclore pessoal em Olinda. Entre risos e estripulias, o inesquecível Bajado. Tão lindos os cartazes de filme que ele pintava. Tão linda a homenagem que ele fez ao fim dos Donzelinhos. Recordo a canção que se cantava quando a turma se retirou da folia de Momo...

Adeus carnaval de Olinda

Cidade tradicional

Os donzelinhos com saudade imensa

Pedem licença para se afastar...

Adeus, adeus para não mais voltar

Eita...

Esbaldando-se ali adiante, Moreno Furacão. Uma lenda da cidade. Não havia nas ondas de lugar nenhum pescador mais cheio de presepadas e causos. Aqui, costas no frio do chão, revejo-o se quebrando no frevo e o revejo também jurando que sua isca já havia fisgado o maior melro do universo, uma infinidade de quilos. Revejo-o contando que já nadara duas noites e um dia para se salvar de um naufrágio em alto-mar. Muito minto, mas aquele sujeito... Num manso, rio.

De repente, entre os clarins de Momo, um berro dirigido a mim:

- Larga essa trouxa, mulé! Vem te espalhá!... – Gargalhada esfarrapada, manteúda do exagero mesmo.

Era Quenga Nora. Sacudo-me a rir. Minha vizinha na Ribeira. Vizinha do meu quartinho de três paredes na Ribeira. Uma das quengas mais cômicas da Cidade Alta. Como me adoravam as “mariposas” da Cidade Alta. Quase toda sexta-feira à noite, antes de saírem para a ronda, iam comer inhame e tomar café mais eu. Pediam para eu contar sobre o Zeppelin, sobre Corisco e Dadá. Eu contava. E inventava. E aumentava e muito mentia. Quenga Nora era sempre a mais ouriçada. Ê, criatura amolestada. Fulana boa d´alma, visse? Galega dos cabelos alourados e olhos verdes, jurava que era descendente dos holandeses, que era, inclusive, da família de Nassau. Sacudo-me a rir.

Gritei de volta:

- Posso não, nega! Estou aviada pra me livrar desses trapos. Tenho ainda que ver minha boneca...

A cara cheia de mungangas e muxoxos, a doida perdeu-se na massa.

Em outro de repente avisto, só vendo a bagunça passar, escoradinho nas portas da igreja no final da ladeira, meu querido amigo Fantasia. Outra lenda dos meus ontens. Que imagem inesquecível tinha aquele cristão. Mistura fascinante de macho-fêmea. Pele mulata luzente. Longuíssimos cabelos vermelhos de tanto que o sol queimara.

Sobrancelhas sempre finas, indícios de batom nos beiços. O figurino? Juro, confesso: vestia-se o dia inteiro, todo dia, com terno de linho, todo abotoado até o pescoço. Os pés, porém, eternamente descalços. Andava aquela cidade toda, de cabo a rabo, sem nunca ter destino certo, vagava apenas. De onde vinha, onde dormia, se tinha família? Nunca se soube. Sua maior diversão? Bater às portas das casas e pedir livros. Tudo lia, tudo. Depois abandonava as brochuras nos bancos das praças. “Adoro saber que alguma pessoa vai encontrar literatura em seu caminho... Apenas ajudo”, fraseava que nem felino entre risos macios. Virava e mexia, aparecia com algum roxo nas fuças. Falava não. Contava nada.

Eu deveria ter perguntado, Virge Santa... Por que nunca perguntei, investiguei, mostrei alguma preocupação, meu Pai?

Quando já rente ao bichinho, sem que ele me visse, deixei um cochicho em seu ouvido:

- Só de olho nos cabras, né, seu dono?

Mão apoiando-se no peito, punho quebrado com tão linda elegância, Fantasia mostrou todo seu susto:

- Afe, menina. Quer me matar, Maria?... – Fazendo charme. Riso entre os lábios pintados – Me respeite, sua dona... Sou um cavalheiro, sabes disso!

Nossas risadas cínicas. Risadas livres. Passarinhos a rasgar o som da turba e subir ao sol escaldante.

Comia no centro o frevo. No rosto de Fantasia fiz um afago e segui. O bloco se concentrou em frente ao mercadinho Chaves e eu, por fim, me desgarrei. Soltei-me do carnaval e parti bairro do Varadouro adiante (...)