Livro é protagonizado
por personagem negra que cruza com personalidades reais, numa poética costura
de fatos históricos do Nordeste e da região Norte.
O
romance “Senhora de Todos os Passos”,
do escritor Carlos Correia Santos
foi um dos vencedores do Prêmio IAP de
Edições Literárias 2011 (Prêmio
Haroldo Maranhão). A obra será lançada no próximo dia 22 de junho, a partir
das 19h, no Instituto de Artes do Pará. O livro conta a saga da ousada e
espirituosa Maria Xavier, personagem inspirada na avó do autor, uma nordestina
que, segundo Correia, fez o anti-êxodo. “Numa época em que a maioria do povo do
Nordeste partia rumo ao Sudeste, ele rumou para o Norte. Foi uma mulher
fantástica, que teve uma vida cheia de lances espetaculares. Testemunhou o voo
do Zepelim, viveu a comoção do assassinato de João Pessoa, esteve perto do
universo do cangaço. Foi muito rica e extremamente pobre. Cresci ouvindo as
narrativas fabulosas que ela contava. E, justamente por isso, tornei-me
escritor. Prometi que, um dia, transformaria os incríveis passos dela em um
romance e, para minha grande honra, agora cumpro a promessa”, afirma,
emocionado.
A
narrativa faz um imenso passeio por episódios importantes da História
nordestina e nortista. Do Recife dos anos 20, passando pelas ladeiras de Olinda
na década de 50, até o barro da Transamazônica dos idos de 1970, seres
fictícios e várias personalidades reais cruzam o infindável caminho de Maria
Xavier. Correia transforma em personagens do livro figuras como Bajado, Catulo
da Paixão Cearense, Irmã Dulce, Corisco, Dadá, Dulcina de Moraes e até Dorothy
Stang. “O enredo vai misturando realidade e fantasia. Exatamente como fazia
minha avó. É bem aquilo de contar um conto aumentando os pontos”, diverte-se
Carlos. Mas ele completa: “Há, porém, muitas vivências de fato experimentadas
por minha família. Uma família de negros pernambucanos que tiveram que lutar
muito para que a sorte se transformasse e as coisas pudessem melhorar. É uma
obra que respira e transpira muitas dores e alegrias reais”.
Esta
é a terceira vez que Carlos ganha o Prêmio IAP. Em 2003, ele venceu a categoria
dramaturgia com o texto da peça “Nu Nery” (cuja
montagem já foi apresentada em Recife, graças à Caravana Funarte Petrobras de
Circulação Nacional). Em 2008, outra peça sua foi laureada: o texto
“Batista”. “Senhora de Todos os Passos” é o segundo romance escrito por
Correia. O primeiro, “Velas na Tapera”, venceu o Prêmio Dalcídio Jurandir,
promovido pela Fundação Cultural Tancredo Neves, em 2008, e foi lançado em
Lisboa, no último mês de junho.
CONQUISTAS
Os
últimos anos têm sido produtivos para Correia. Além do recente prêmio do IAP,
de ter lançado “Velas na Tapera” em Portugal, na FNAC Chiado (o escritor é
representado na Europa pelos produtores Fercy Nery e Rita Pestana), de ter duas
peças suas apresentadas com bastante êxito em São Paulo (“Perfídia Quase
Perfeita” e “A Fábulas das Águas”, montadas pela Cia. Fé Cênica) e de ver
outros dois espetáculos seus recentemente montados com grande receptividade em
Belém (“Acorde Margarida” e “Batista”) Correia conquistou o segundo lugar geral
da quarta edição do concorrido Seleção
Brasil em Cena, edital de fomento à nova dramaturgia brasileira, promovido
pelo Centro Cultural Banco do Brasil no
Rio de Janeiro (CCBB). Carlos
foi o único autor da região Norte escolhido para o projeto. O certame
selecionou também um escritor do Nordeste. Os demais foram das regiões sul e
sudeste. A obra com que Carlos Correia foi destacado é o monólogo “Um é
Multidão”. Essa foi a segunda vez que o paraense participou da iniciativa. Em
2007, o escritor também foi selecionado para o concurso justamente com sua comédia
“Perfídia Quase Perfeita”.
Criado
para propiciar o contato do público com novas dramaturgias e estimular o
intercâmbio entre autores, atores e diretores contemporâneos, o Seleção Brasil
em Cena permite com que os 12 textos selecionados em cada edição ganhem
leituras dramáticas dirigidas por grandes nomes da atual cena teatral
brasileira. O texto de Correia foi dirigido por Gilberto Gawronski, ator e diretor vencedor de importantes prêmios, como
o Mambembe e o Sharp. Em 2007,
a obra do nortista foi dirigida por Stella Miranda, que
viveu a síndica do humorístico Toma Lá Dá Cá, exibido na Rede Globo. Apresentadas
no próprio CCBB Rio, as leituras dramáticas foram realizadas por alunos
formandos em escolas de teatro da capital carioca. Ao final de cada leitura, o
público atribuiu notas. Os espectadores deram a Correia o segundo lugar geral
na competição.
EUROPA
A literatura é bandeira capaz de
estreitar fronteiras. E Carlos Correia Santos pode comprovar isso em sua estada
no continente europeu em 2011. Seu livro “Velas na Tapera” foi lançado em
Lisboa junho daquele ano em um evento realizado na FNAC Chiado, com o apoio da
Embaixada do Brasil em Portugal. Parte integrante do projeto “Recital Mais
Brasil: Da Amazônia para o Mundo”, criado pelo produtor cultural e músico Fercy
Nery (representante de Correia no território lusitano, ao lado da pesquisadora
Rita Pestana, antropóloga e membro da direção do Núcleo de Lisboa da associação
EpDAH), a programação contou com declamação de poemas de Carlos ao som de
clássicos do cancioneiro brasileiro e sessão de autógrafos do romance. A
execução musical esteve a cargo do próprio Nery e do baterista pernambucano
Attila Argay. A sala que acolheu a programação ficou lotada e a apresentação foi
aplaudida de pé. A obra passou, então, a figurar na prateleira dos destaques da
livraria da FNAC Chiado.
Após o evento na FNAC, Correia
seguiu viagem por Espanha, Itália, França, Bélgica, Suíça e Áustria, realizando
pesquisas para novos romances e, no final de junho, retornou a Lisboa para mais
dois eventos. No dia 30, participou de um jantar especial realizado na sede do
Centro InterculturaCidade, dirigido por Mário Alves, membro da Associação
Portuguesa para o Desenvolvimento Local (Animar). No encontro, Correia falou
sobre sua obra, sobre as peculiaridades culturais da Amazônia e firmou contato
com artistas europeus e africanos, como o célebre ator e dramaturgo português
Helder Costa (autor de espetáculos teatrais já montados em diversas cidades do
mundo) e o cantor e compositor angolano Gonçalves Correia, o Chalo.
TRECHO
DO ROMANCE
“SENHORA
DE TODOS OS PASSOS”
(...)
Como renasci? Dos confetes, serpentinas, sacudidos de pernas e braços. Do ter
que ir. Oxi, mais que tudo, negra nordestina entendi-me, ora pois. Fiz do já
ido poeira. Do ódio, fogo. E segui.
Sinto de novo
o peso da trouxa de roupa sobre o juízo...
Gargalho.
Eita,
peste! Dá para escutar? Ponha-se reparo! Ó!... Vôtes!... Dá para escutar não?
Espia só: é o frevo! É Carnaval. Saudade tanta... Carnaval em Olinda naqueles
idos era já estirão de festa num mar de cores. Alegorias e criaturas de todas
as cores. Um mar até maior que o das praias do Carmo e dos Milagres. Pulos de
caboclinhos na marcação das preacas, a fazer estalar as setas contra os arcos.
Tão lindos caboclinhos com seus cocares, saias e adereços feitos com penas de
avestruz e pavão. Pulavam os caboclinhos. Pulavam as cores dos maracatus
rurais. O fabuloso excesso de detalhes, panos e tons dos tão brabos e tão
poéticos caboclos de lança. Suas evoluções, as fitas dançando no ar. O mistério
dos palhaços mascarados, a traquinagem das almas. Cores para danar! Pulos,
cantorias, muita gente nas ruas. Gente feliz. Eu idem.
Com
a trouxa de roupa lavada em cima da cabeça, eu descia a ladeira da Prefeitura
misturada à abençoada promiscuidade do carnaval olindense. Ia na correnteza do
bloco criado pelos meninos do Amparo e dos Quatro Cantos. Pitombeiras. Ê, gota
serena. Coisa boa de lembrar. Eu ia. Os clarins fazendo meu sangue arder de
vontade. Queixo erguido, muito mulher, muito senhora, equilibrando o peso do
meu esforço sobre o quengo. Equilibrar uma ruma de roupa engomada em meio ao
frevo? Uma ciência da qual só as fêmeas de muita labuta – pernambucanas
legítimas – são professoras.
E,
assim, eu ia. Toda digna de mim mesma. Vestido de rendas e brocados? Não mais.
Naquele então, a saia rodada e a blusa com manga de coco que os poucos tostões
me permitiam comprar. Coisa muito mais modesta que as peças sustentadas pelos
pixains. Agora não mais coroa de pixains. Apenas perfumada maçaroca, presa por
tiras. Esmeraldas e rubis como enfeites?
Fim disso. Somente em cada orelha as argolas douradas compradas com o suor de
muito joelho esfolado em faxina de chão e muita mão rachada por sabão em
pedra.
Com
a trouxa na cabeça, eu descia a ladeira capturada pelo agudo dos instrumentos
da fuzarca. Eu podia ter evitado a troça? Até sim. Mas não resisti. Emburaquei
na multidão. Ainda tinha muito a fazer no dia, mas resisti qual o quê!
Já
que era parte do caminho mesmo para o Convento de Santa Teresa, fiz do rumo do
bloco o meu também, né, não? Oxi, com o peso dos panos aprumado pelo toitiço,
eu tinha que me conter um tiquinho, mas ia sacudindo os peitos.
Num
manso, rio.
Junto,
ao redor, por todo lado, rostos do meu folclore pessoal em Olinda. Entre risos
e estripulias, o inesquecível Bajado. Tão lindos os cartazes de filme que ele
pintava. Tão linda a homenagem que ele fez ao fim dos Donzelinhos. Recordo a
canção que se cantava quando a turma se retirou da folia de Momo...
Adeus carnaval de Olinda
Cidade tradicional
Os donzelinhos com
saudade imensa
Pedem licença para se
afastar...
Adeus, adeus para não
mais voltar
Eita...
Esbaldando-se
ali adiante, Moreno Furacão. Uma lenda da cidade. Não havia nas ondas de lugar
nenhum pescador mais cheio de presepadas e causos. Aqui, costas no frio do
chão, revejo-o se quebrando no frevo e o revejo também jurando que sua isca já
havia fisgado o maior melro do universo, uma infinidade de quilos. Revejo-o
contando que já nadara duas noites e um dia para se salvar de um naufrágio em alto-mar. Muito
minto, mas aquele sujeito... Num manso, rio.
De
repente, entre os clarins de Momo, um berro dirigido a mim:
-
Larga essa trouxa, mulé! Vem te espalhá!... – Gargalhada esfarrapada, manteúda
do exagero mesmo.
Era
Quenga Nora. Sacudo-me a rir. Minha vizinha na Ribeira. Vizinha do meu
quartinho de três paredes na Ribeira. Uma das quengas mais cômicas da Cidade
Alta. Como me adoravam as “mariposas” da Cidade Alta. Quase toda sexta-feira à
noite, antes de saírem para a ronda, iam comer inhame e tomar café mais eu.
Pediam para eu contar sobre o Zeppelin, sobre Corisco e Dadá. Eu contava. E
inventava. E aumentava e muito mentia. Quenga Nora era sempre a mais ouriçada.
Ê, criatura amolestada. Fulana boa d´alma, visse? Galega dos cabelos alourados
e olhos verdes, jurava que era descendente dos holandeses, que era, inclusive,
da família de Nassau. Sacudo-me a rir.
Gritei
de volta:
-
Posso não, nega! Estou aviada pra me livrar desses trapos. Tenho ainda que ver
minha boneca...
A
cara cheia de mungangas e muxoxos, a doida perdeu-se na massa.
Em
outro de repente avisto, só vendo a bagunça passar, escoradinho nas portas da
igreja no final da ladeira, meu querido amigo Fantasia. Outra lenda dos meus
ontens. Que imagem inesquecível tinha aquele cristão. Mistura fascinante de
macho-fêmea. Pele mulata luzente. Longuíssimos cabelos vermelhos de tanto que o
sol queimara.
Sobrancelhas
sempre finas, indícios de batom nos beiços. O figurino? Juro, confesso:
vestia-se o dia inteiro, todo dia, com terno de linho, todo abotoado até o
pescoço. Os pés, porém, eternamente descalços. Andava aquela cidade toda, de
cabo a rabo, sem nunca ter destino certo, vagava apenas. De onde vinha, onde
dormia, se tinha família? Nunca se soube. Sua maior diversão? Bater às portas
das casas e pedir livros. Tudo lia, tudo. Depois abandonava as brochuras nos
bancos das praças. “Adoro saber que
alguma pessoa vai encontrar literatura em seu caminho... Apenas ajudo”,
fraseava que nem felino entre risos macios. Virava e mexia, aparecia com algum
roxo nas fuças. Falava não. Contava nada.
Eu
deveria ter perguntado, Virge Santa... Por que nunca perguntei, investiguei,
mostrei alguma preocupação, meu Pai?
Quando
já rente ao bichinho, sem que ele me visse, deixei um cochicho em seu ouvido:
-
Só de olho nos cabras, né, seu dono?
Mão
apoiando-se no peito, punho quebrado com tão linda elegância, Fantasia mostrou
todo seu susto:
-
Afe, menina. Quer me matar, Maria?... – Fazendo charme. Riso entre os lábios
pintados – Me respeite, sua dona... Sou um cavalheiro, sabes disso!
Nossas
risadas cínicas. Risadas livres. Passarinhos a rasgar o som da turba e subir ao
sol escaldante.
Comia
no centro o frevo. No rosto de Fantasia fiz um afago e segui. O bloco se
concentrou em frente ao mercadinho Chaves e eu, por fim, me desgarrei.
Soltei-me do carnaval e parti bairro do Varadouro adiante (...)