sábado, 15 de novembro de 2008

O DESENHISTA DO ETERNO ENCANTO



JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 15/11/2008

Aos 92 anos, o cenógrafo e
figurinista Nilson Penna é
lenda das artes brasileiras

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Entenda o primeiro parágrafo desta matéria como uma bilheteria. Leia estas primeiras palavras como se elas fossem tíquetes, ingressos que permitem acesso a um espetáculo humano. Um show de vida. Tome essa página de jornal como a sala desse grande espetáculo. Procure um bom assento entre uma letra e outra e acomode-se. Daqui a algumas frases se abrirão cortinas para um paraense que se tornou mestre do teatro brasileiro. Um nortista que fez do mundo seu norte e, assim, se vestiu com os figurinos do sonho e da realização. Você conhece Nilson Penna? Então, preste atenção. A campa soou. As lembranças estão entrando no palco. Vamos assistir.

“Aprendi a respeitar a arte como precioso canal de relacionamento humano”, é com esta fala que nosso protagonista inicia sua performance neste texto. Filho do fundador do Clube do Remo, ele nasceu no dia 12 de fevereiro de 1916, na fazenda Livramento, Ilha de Marajó. Hoje, com 92 anos, há décadas radicado no Rio, Nilson é simplesmente uma lenda. Trabalhou como ator, bailarino, cenógrafo, figurinista, pintor, decorador e crítico de dança do Jornal do Brasil. Está catalogado em importantes enciclopédias nacionais e internacionais, participou de duas Bienais de São Paulo e foi assessor cultural federal no Ministério da Cultura na época de Pascoal Carlos Magno. Foi amigo íntimo de Bidú Sayão e Carmem Miranda. Riu e dançou com Judy Garland. Criou figurinos para titãs como Paulo Autran, Tônia Carrero e Márilia Pêra.

O mestre esteve recentemente em Belém. Voltou à terra natal para receber justíssima homenagem na programação do Fida, realizado por Clara Pinto. O regresso tirou das coxias a emoção. Pôs novamente sob o canhão de luz o bem-querer por seu berço. “Fiquei muito tocado com a iniciativa de Clara. Esta homenagem me fez rever lugares da minha vida que me trazem lindas lembranças”, conta o artista. Entre os traços que mais recolorem a afetividade de Nilson, está, como não podia deixar de ser, um templo para a arte em Belém. “Iniciei minha carreira aos 10 anos de idade, no Theatro da Paz, fazendo o papel de Lyzette em Monsieur Le Corbot et Leonard de La Fontaine”.

INSPIRAÇÕES

Em sua marca no centro do palco desta entrevista exclusiva ao Magazine, sempre elegante, voz suave, o ator de muitas conquistas vai tracejando mais e mais recordações. Usa o lápis da saudade, o esfuminho da delicadeza. Redesenha sua história. “Tive como fonte inspiradora Isadora Duncan, que via nos livros da biblioteca de meus pais. Ficava apaixonado por sua força e vontade de liberdade. Esta palavra, aliás, muito tem a ver comigo, pois é a palavra chave do meu signo, aquário”.

Das ilustrações da imaginação às páginas da realidade bastaram os passos de quem sempre soube coreografar seus caminhos. Sobre a relação próxima que teve com Carmem Miranda, Nilson pinta um quadro fascinante; “Assisti a estréia dela moçinha, no Cassino da Urca, aonde ia quase todas as noites aplaudi-la. Tornei-me amigo dela e de sua irmã, Aurora Miranda. Cheguei a ir à sua casa no Rio, perto do Cassino, e no seu apartamento em Nova Iorque”. Aproveita e faz um desabafo: “Quando foi inaugurado, aqui no Rio, o Museu Carmem Miranda, fui convidado para fazer a exposição das suas coisas. Desenhei dezoito manequins para o evento e depois roubaram tudo. Uma lástima”.

UM ATO CHAMADO BIDU SAYÃO

No libreto desse espetáculo humano, há um ato que merece narrativa especial: a longa e intensa amizade do artista com Bidú Sayão. Foram 50 anos de cumplicidades. “Conheci Bidú em 1937, quando ela foi dar um concerto no Theatro da Paz. Para a apresentação, decorei o palco com flores e plantei nos fundos duas árvores de acácia, deixando o local como se fosse um jardim. Bidú, depois do ensaio, perguntou quem tinha feito aquela decoração tão bonita e mandou me chamar, pois queria me conhecer. Daí nos tornamos amigos íntimos”. Nilson guarda consigo relíquias relacionadas à diva: “Tenho muitas cartas dela. Freqüentei sua casa no Mayne e a recebia em jantares no meu apartamento. Foi ela quem me incentivou a sair de Belém para aperfeiçoar meu talento”.

Solto no mundo das memórias, vai desenhando folhas e mais folhas nas quais surgem outros nomes colossais: “Conheci Cecília Meireles, Di Cavalcanti, que me desenhou, Carlos Drummond de Andrade, Juscelino Kubitscheck, Edith Piaf, Igor Stravinsky, Jean Cocteau, Dercy Gonçalves, Cacilda Becker, Fernando Bujones, Rudolf Nureyev, Margot Fonteyn, entre tantos outros. Todos me deram mais inspiração e mais cultura”.

Da platéia em que o entrevistador acabou se transformando vem a pergunta: como foi, afinal, essa história de dançar com Judy Garland? “Foi numa recepção após uma gloriosa récita de Bidú Sayão no Hollywood Ball, em Los Angeles. Judy Garland estava lá e nos conhecemos por intermédio de Bidú. Por termos ficado na mesma mesa, dancei e ri muito com a estrela, que me lembro de ser simpática e espirituosa”.

Na verdade, puro espírito de inspiração é Nilson. Muitas cenas, muitos personagens, muitos cenários. Um ser-espetáculo certamente. Terminada sua apresentação nesta matéria – pequeno monólogo dentro de um enredo que mereceria óperas – o artista aguarda por aplausos. É hora, portanto, de nos levantarmos das poltronas do esquecimento para batermos palmas. Demoradas palmas. Afinal, são 92 anos de realizações. O protagonista agradece, comovido: “Continuo criando todos os dias. No desenho e na pintura. E afirmo que o teatro me torna um homem que faz parte de uma arte que contém todas as artes”.

sábado, 8 de novembro de 2008

QUANDO UM CISNE NOS SOLTA DE NÓS


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 08/11/2008

OPINIÃO
Na sua terceira
semana em cartaz,
peça do Cuíra
mexe com tabus

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

O que leva alguém a abrir seus armários, tirar dali todos os trajes que lhe escondem os segredos, vestir-se com os silêncios impostos pelas hipocrisias sociais e rumar para o teatro? Que teatro? O Teatro Cuíra, que transforma a arte em seu ponto numa das esquinas da Riachuelo, no centro de Belém. O que faz com que alguém se sente na platéia do espetáculo ali apresentado e comece a sentir-se nu cena a cena? Talvez as asas quebradas por baixo do que ainda não se conseguiu tirar dos armários? Talvez a sensação de estar longe dos ninhos da tolerância?

Todas essas dúvidas parecem se acomodar ao lado do público que vem conferindo o espetáculo “Quando a Sorte te Solta Um Cisne na Noite”, que tem sessões hoje, às 21h, e amanhã, às 20h. Premiado no concorrido edital nacional Myriam Muniz, da Funarte, com dramaturgia de Edyr Augusto e direção de Wlad Lima e Karine Jansen, o espetáculo chega a sua terceira semana em cartaz mantendo uma provocativa rotina: abrir as gaiolas das polêmicas do universo homossexual masculino e libertar, noite afora, as mais diversas opiniões.

Na primeira abordagem da reportagem, Miguel Lopes hesitou. O entrevistado em potencial tinha ido ver o “Cisne”, mas achou que talvez não fosse prudente se manifestar publicamente. É recém divorciado. Faz questão de frisar sua heterossexualidade. Mas a pergunta era tão simples. Limitava-se a: quais reflexões o espetáculo te trouxe? Após a resistência, a resposta também simples: “A peça me fez rir e me fez pensar. Fiquei conhecendo situações do universo gay que eu realmente ignorava”.

“O primeiro fator que tem movido os espectadores a virem para o Cuíra ver a peça é mesmo a curiosidade”, explica Karine Jansen. Mas a diretora percebe muitos aspectos entre as plumas do que voa para além do palco: “Precisamos admitir que temos uma cultura gay muito forte aqui em Belém. Isso é cada vez mais evidente. Ao lado desses elementos, há também o fato de que, no final das contas, a peça gera identificações. Mesmo o público hetero se identifica. Vivemos numa época em que cada vez mais os corpos são construídos não só pela natureza, e sim pelo desejo que eles podem gerar. As inúmeras turmas de musculação que existem por ai comprovam o que digo. A verdade é que somos de um tempo em que a identidade sexual anda muito misturada”.

INTERPRETAÇÕES NUAS

O que também se mistura à emoção da platéia é o tom quase confessional da montagem. A peça propõe uma sucessão de atuações-depoimentos que vão arrancando mais e mais os trapos que cobrem muitos pudores. Intérprete de um dos monólogos mais tocantes do espetáculo, o ator e visagista Nelson Borges tem lágrimas misturadas a sua maquiagem no término da apresentação, enquanto conta: “Minha fala é a de um transexual que sonha em mudar de sexo. Construir esta cena foi realmente muito difícil para mim. Quando eu soube que teria que me expor, ficar nu, relutei um pouco. No final, vi que era verdade algo que Wlad e Karine me falaram ao longo dos ensaios. A platéia fica muito mais nua que eu”. Borges percebeu a relevância disso de forma especial: “Tenho um irmão extremamente machista que veio me assistir. No final, ele me abraçou inicialmente de maneira tímida. Depois me abraçou mais forte e chorou muito”. Karine complementa: “Esta cena que se passou com o Borges cerca todo o espetáculo. A peça tem ajudado nas negociações familiares sobre a questão. Vemos, nas cadeiras, filhos com suas mães, com seus pais. Famílias inteiras. Isso é muito bom”.

DESAFIOS ÍNTIMOS

É muito bom igualmente para o enriquecimento do fazer teatral, conforme explica o ator André Mardock: “Precisei buscar entender melhor o universo gay. Foi um desafio particular mesmo. Fiquei temeroso. Foi difícil. Mas como teatro cura, o processo fluiu. Tratar desse assunto pode machucar, porém pode mudar conceitos”. Para Paulo Marat, a superação também foi uma colega de cena: “Essa era uma esfera que eu realmente não conhecia. Sentimentos que eu não dominava. Justamente por isso tem sido um exercício maravilhoso”. Com apenas 19 anos, o jovem ator Ícaro Gaya é mais um que sobrevoa o contentamento: “É bom saber que muita gente sai do teatro impressionada com a sinceridade dos textos. A idéia é essa”.

Para Karine Jansen, é fundamental afastar do lago do isolamento tudo o que a ave do preconceito representa: “A sociedade hoje organiza um sistema de exclusão dos assuntos ligados à sexualidade. Isso precisa mudar para que possamos discutir temas como o travestismo infantil, por exemplo. O Pará é um imenso exportador de meninos travestis, conforme matérias do próprio Liberal estão mostrando. Temos que trazer tudo isso para a cena”. Encerrada a apresentação deste novo projeto do Cuíra, vem uma certa necessidade de recompor o figurino que cerca a alma. Vem também a pergunta: aplaudir ou não aplaudir? Bem, se o Cisne te soltar na noite e fizer tua garganta ficar presa, então aplauda. Porque aplaudir é chamar os deuses para ver.

LEMBRAR PARA NUNCA MORRER



JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 02/11/2008
O dia 02 de novembro traz ao cartaz
e à pauta a poética certeza de que
o fim da existência física pode ser
apenas uma cena recriada pelo talento

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Quando questionado sobre as razões que o levam a gastar tanto dinheiro com sua artista preferida, o paraense Ronaldo Mesquita não hesita em responder: “Paixão. Faço tudo para ficar um pouquinho mais perto dela. Invisto minhas economias sem pestanejar. Compro passagem de ônibus ou de avião. Pago hospedagem em bons hotéis. Vou atrás da minha amada cantora. Ela merece esse meu empenho”. A amada cantora em questão? Acredite: Clara Nunes. Não. Você não está lendo uma matéria antiga. Fique certo de que esta não é uma reportagem feita à época em que a diva da MPB ainda era viva. O fato é que, para Ronaldo, de algum modo – mesmo diante dos limites do irreversível – Clara continua lindamente viva.

Todo ano, nessa época do ano – sempre que o período de férias permite, é bem verdade –, o funcionário público arruma suas malas e parte para o Rio. Hospeda-se na Cinelândia e cumpre um ritual de carinho rigorosamente igual ao do tiete que vai ao show. O palco, no entanto, é o cemitério de São João Batista, em Botafogo, onde a eterna intérprete de Morena de Angola deita-se em camarim de sereno descanso. Os presentes que sempre leva são simbólicos: flores para perfumar a lembrança e velas para manter aceso o brilho de Clara. Algo de morbidez em tudo isso? De forma alguma, defende Mesquita: “Para fãs como eu, os ídolos não morrem. Nunca. Jamais”.

Hoje é, sem dúvida, o dia ideal para se tocar no assunto. Os livros abrem suas páginas, os teatros descortinam seus palcos, os discos tocam notas raras, as telas recolorem o talento. Tudo para afirmar: quem transforma a vida em arte consegue o milagre de atravessar todos os tempos. “Os grandes artistas não morrem. Isso para mim é um fato”, afirma o produtor Geraldo Vasconcelos. “Ouço os CDs de Maysa, de Elis e tenho essa convicção. É como se elas estivessem ao meu lado. Quando me emociono com suas interpretações, digo para mim mesmo: elas permanecem”.

RENASCIMENTO

O estudante de jornalismo Arthur Castro vai além. Ele acredita que o talento de ontem é tão perpétuo que consegue mesmo renascer nos talentos de hoje: “Os grandes artistas se tornam fundamentais. Por isso viram referências para outras gerações. Maysa, Elis e Clara Nunes comprovam isso. Escuto atualmente Rita Ribeiro e sinto nela uma discípula da Clara. Não no que tange às vozes. Falo do amor pela temática afro-brasileira. Com relação à Maysa... Nossa, acho que todas rendem tributo a ela de algum modo. A própria Elis foi uma sucessora dela no quesito rainha da fossa. A gravação para Debaixo da Porta é exemplo do que falo”.

Juntando-se a todo esse coro da capela do bem-querer, o ator Flávio Furtado – membro da Cia. de Teatro Madalenas – opina: “As personalidades da arte que não estão mais fisicamente entre nós, conseguem se manter no plano da memória emotiva, afetiva e até espiritual porque mexem com nosso imaginário. O artista vive uma vida comum, porém cheia de glamour. E nós, como meros mortais que somos, gostaríamos de viver pelo menos quinze minutos dessa fama”.

O escritor Marcelo Marat, por sua vez, é logo taxativo: “A arte é a única saída para esse mundo de mediocridades. A maioria das pessoas já está morta antes de morrer. Os artistas, como seres inconformados, transcendem isso. Van Gogh, por exemplo. Ou Baudelaire. Ou Pessoa com seus heterônimos. São seres que sofrem por conhecerem o absurdo e a tragédia de viver”.

DESTINOS

Alguns artistas se mostram tão senhores da eternidade que chegam a provocar arrepios. Parecem realmente saber que tudo tem um aspecto transitório, porém fatalista. Entre as estrofes da literatura produzida no Pará, o poeta que ilustra esse mistério é Mário Faustino. “Alguns biógrafos e pesquisadores apontam na obra dele o que se assemelha a uma assombrosa premonição sobre sua própria morte”, explica a voraz leitora Carmem Nunes. Faustino faleceu com 32 anos, em novembro de 1962, num acidente aéreo no Peru. Para ilustrar o que disse, ela abre o livro “O Homem e Sua Hora” – único lançado pelo autor – e lê um trecho de poema escrito por Mário antes de sua trágica partida: “Atrai-me ao despudor da luz esquerda / Ao beco de agonia onde me espreita / A morte espacial que me ilumina. / Sinto que o mês presente me assassina”. Comovida, Carmem complementa: “Nao é impressionante? Para mim, ele continua vivo. Aqui. Nas minhas mãos. Não só dentro dessa publicação (acaricia a obra), mas dentro do meu coração”.

Ainda no território das letras, a história do poeta icoaraciense Antônio Tavernard – cujo centenário foi comemorado no dia 10 de outubro – também cria belas rimas entre a arte e a superação das despedidas. “Aos dezoito anos, ele foi diagnosticado com hanseníase. Isso na década de 30. Ou seja, foi uma sentença de morte”, relata a professora de português Luiza Cavalcante. “O belo, no entanto, foi que aquele rapaz transformou toda sua dor em poesia. Ele usou a intensidade da agonia para criar trabalhos eternos. Mesmo tendo sido vencido pela doença cedo, Tavernard ainda vive graças aos seus escritos”. Uma mostra disso? Seus versos: “Tenho a vida do mar / Tenho a alma do mar”.

Talvez a memória seja como o mar citado pelo escritor. Sobre estas ondas, os barcos da recordação. Nestes barcos, os artistas. Então, que fim dar para essa reportagem? Que tal pensar que não há fim. Que, de algum modo, tudo pode ser sempre reescrito, outra vez encenado, de novo cantado? No palco que nos cerca. Em algum palco além. Ao telefone, do Rio de Janeiro, Ronaldo Mesquita avisa que não poderá mais se estender na entrevista porque chega a hora de ir aplaudir Clara Nunes. E arremata: “Se ela ainda merece? Evidente que sim. Os argentinos costumam dizer que, mesmo falecido há décadas, Carlos Gardel é uma lenda tão forte que canta cada vez melhor. Pois Clara também. Clara Nunes canta cada vez melhor”.


LUXARDO, CÂMERA... AÇÃO!



Matéria publicada no
CADERNO MAGAZINE
De O Liberal
Em 01/11/2008

Centenário de nascimento do
cineasta Líbero Luxardo reajusta
as lentes de várias opiniões sobre
o legado deste pioneiro do audiovisual

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

O set já está preparado. E ele tem como ambientação e objetos de cena o instigante contraste entre o verde e a urbanidade amazônica de décadas passadas. A luz já está afinada. A apurada e escaldante luz solar dos desafios e da inventividade. É bom checar o áudio. Sim ele também está aberto. E traz vozes do povo, vozes da intelectualidade, vozes da política, vozes da mata.

O set está preparado. A cadeira do diretor, no entanto, está vazia. Nela se lê o nome Líbero Luxardo. Considerado um dos grandes pioneiros da história do cinema nacional – especialmente dos registros cinematográficos na Amazônia - Líbero, se vivo fosse, bateria, este ano, a claquete de seu centenário. Cem anos absolutamente vivos, mesmo no escurinho das salas do patrimônio cultural. Cem anos que projetam um legado que não pára de procurar telas para ser exibido.

O set está preparado. A cadeira está vazia. Mas sempre plena de memória. Então, nesta atemporal cadeira de diretor vamos fazer sentar alguns dos atores que hoje preservam o legado deste incomum cineasta. Vamos fazê-los sentar diante das lentes desta reportagem e filmar, com as letras, cenas de lembranças, opiniões e críticas. O set está preparado. Silêncio na leitura. Câmera, ação... Luz. Lux. Luxardo.

“Libero foi o primeiro a lançar um longa-metragem de produção local. O clássico Um Dia Qualquer, de 1962. Paulista de nascimento, fez cinema em Mato Grosso e descobriu a Amazônia em 1939. Fixou residência em Belém, montou um estúdio na avenida Nazaré, planejou um longa em 1941, que se chamaria Amanhã nos Encontraremos, mas a dificuldade de se obter filme negativo em tempo de guerra afastou o projeto”, ressalta o pesquisador e cinéfilo Pedro Veriano, primeiro a aceitar o convite para gravar suas considerações nessa reportagem. Somamos uma importante edição ao seu depoimento: “Ele acabava fazendo tudo: roteiro, produção, direção, montagem, assistência de fotografia e som. Chegou a despedir dois diretores de fotografia famosos quando da filmagem de Um Dia Qualquer. Só quem o entendia, na área técnica, era o paraense e amigo particular dele, Fernando Melo”.

CORTA PARA...

Close nas considerações do cineasta paraense Januário Guedes: “Convivi com o Líbero logo no início da minha carreira, quando eu ainda fazia filmes com super oito. Embora tenha enfrentado uma considerável dificuldade para fazer a transição entre o cinema mudo e o cinema falado, o Luxardo criou algo relevante: uma ficção que acaba servindo de testemunho documental de outras épocas da cidade. Ele registrou de forma importante as paisagens físicas da capital e do interior, em seu tempo”.

Numa fusão que nos traz de volta a Veriano, temos outro interessante enquadramento sobre a questão da problemática técnica: “É claro que ele não queria fazer um cinema com linguagem especifica. Queria um cinema acadêmico que fosse compreendido pelos espectadores comuns. Sua escola era realmente a da fase de transição entre cinema o mudo e o sonoro. Ficava aborrecido quando as dificuldades impediam a concretização de detalhes imaginados nos roteiros, nos quais as falas reproduziam um conceito primitivo de cinema. Muitas das falas eram declamadas e não havia a chance de som direto”.

Hora de fazer um rápido zoom sobre as opiniões que a nova geração do audiovisual paraense registra sobre Luxardo. Trazemos, assim, para o set o jovem cineasta e produtor João Inácio: “Este homem que se dedicou a fazer filmes em Belém foi o primeiro a realizar grandes investidas na produção local. Ele é um marco e um exemplo para todos que amam cinema. Sua história nos permite acreditar na real possibilidade de fazermos ficção de longa na cidade. Além de tudo, ele nos ensinou que o papel do governo é fundamental nessa investida”.

NOVO CORTE...

Um imaginário movimento de câmera nos leva a uma importante locação da biografia de Líbero: as cenas que protagonizou no ambiente político de sua época, conforme relata o pesquisador José Carneiro: “Ele chegou ao Pará por causa de seu interesse como cineasta. E aqui começou sua estreita ligação com Magalhães Barata. Fazia documentários sobre o governo do líder do PSD. Esses documentários, raros, ainda existem por ai, suponho. Depois de algum tempo, Luxardo foi cooptado por Barata, que o alçou a deputado federal. Com a queda do PSD, em 1964, via golpe militar, Libero passou a se dedicar integralmente à sua visão de Amazônia e ao seu sonho de cineasta”.

O enquadramento outra vez se abre para Pedro Veriano: “No final das contas, Libero está na história do cinema brasileiro como um dos membros dos ciclos regionais, ao lado de Alexandre Wulfes e Humberto Mauro. Ele era conhecido no meio, por isso conseguia que atores famosos, como Rodolfo Arena, viessem filmar no Pará. O que antes era execrado pela critica, como Um Dia Qualquer, hoje é louvado como uma exposição histórica”.

E é o take raro de tamanha história que alimenta as muitas homenagens que esse artista começará a receber. Uma das principais será rodada pelo Museu da Imagem e do Som, que realizará na sala Líbero Luxardo, entre os dias 5 e 9 de novembro, uma série de ações comemorativas: “Temos a missão de resguardar e difundir a memória paraense, tanto visual quanto sonora. Líbero Luxardo realizou mais de meia dúzia de produções de filmes de longa metragem, institucionais e cinejornais aqui na região. É, portanto, muito importante difundir as obras e a vida deste cineasta para as futuras gerações, que hoje mal têm contato com a história cinematográfica nacional”, ressalta Paula Macedo, diretora do MIS.

Após toda essa panorâmica, temos um plano fechado sobre um súbito riso de Januário Guedes, enquanto frisa: “Falar no Líbero me faz pensar em algo que, no final das contas, é verdade. Cinema é coisa que atrai sonhadores, visionários. A história do Luxardo prova isso. Ele chegou a ser dono de cartório e perdeu tudo, morreu pobre porque investiu o que tinha e o que não tinha na ânsia por filmar”.

SUB

Ainda uma última tomada

Antes de deixar subirem os créditos dessa matéria, uma última tomada. As cenas de um enredo afetivo. Líbero Luxardo foi casado com a célebre poeta paraense Adalcinda Camarão. A união teve como fruto um filho: Tom. Naquela que talvez tenha sido sua última entrevista, concedida a esse repórter em maio de 2000, Adalcinda também se pôs diante das lentes da lembrança e deixou gravados seus sentimentos. Sobre o primeiro encontro entre os dois, acontecido na redação da revista “A Semana”, quando ela tinha apenas dezesseis anos, disse: “Foi um encontro casual. Eu costumava freqüentar a redação, cantava nas rodinhas de violão que eles faziam. Naquele dia, eu tinha ido buscar um magazine e nos encontramos”.

A cena final da longa história que interpretaram... A cena final não foi assistida pela poeta. Quando Líbero morreu, num dia de finados, em 1980, vítima de um câncer de próstata que ele insistia em tratar como mera infecção urinária... Quando Líbero morreu, Adalcinda e o filho viviam no exterior. Sobre o fato de não ter conseguido acompanhar o enterro, ela contou: “Eu estava nos Estados Unidos e ele aqui no Brasil. Não tive tempo sequer de vê-lo pela última vez. Quando cheguei, o sepultamento já havia acontecido”.

Para o companheiro que, em um dia qualquer, transformou a Amazônia em set eterno, Adalcinda Camarão escreveu: “Vem dormir na maqueira dos meus olhos, meu amor / estou sobre a sombra da saudade / com medo que o luar / venha me descobrir toda de branco”.