Matéria publicada no
CADERNO MAGAZINE
De O Liberal
Em 01/11/2008
Centenário de nascimento do
cineasta Líbero Luxardo reajusta
as lentes de várias opiniões sobre
o legado deste pioneiro do audiovisual
CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria
O set já está preparado. E ele tem como ambientação e objetos de cena o instigante contraste entre o verde e a urbanidade amazônica de décadas passadas. A luz já está afinada. A apurada e escaldante luz solar dos desafios e da inventividade. É bom checar o áudio. Sim ele também está aberto. E traz vozes do povo, vozes da intelectualidade, vozes da política, vozes da mata.
O set está preparado. A cadeira do diretor, no entanto, está vazia. Nela se lê o nome Líbero Luxardo. Considerado um dos grandes pioneiros da história do cinema nacional – especialmente dos registros cinematográficos na Amazônia - Líbero, se vivo fosse, bateria, este ano, a claquete de seu centenário. Cem anos absolutamente vivos, mesmo no escurinho das salas do patrimônio cultural. Cem anos que projetam um legado que não pára de procurar telas para ser exibido.
O set está preparado. A cadeira está vazia. Mas sempre plena de memória. Então, nesta atemporal cadeira de diretor vamos fazer sentar alguns dos atores que hoje preservam o legado deste incomum cineasta. Vamos fazê-los sentar diante das lentes desta reportagem e filmar, com as letras, cenas de lembranças, opiniões e críticas. O set está preparado. Silêncio na leitura. Câmera, ação... Luz. Lux. Luxardo.
“Libero foi o primeiro a lançar um longa-metragem de produção local. O clássico Um Dia Qualquer, de 1962. Paulista de nascimento, fez cinema em Mato Grosso e descobriu a Amazônia em 1939. Fixou residência em Belém, montou um estúdio na avenida Nazaré, planejou um longa em 1941, que se chamaria Amanhã nos Encontraremos, mas a dificuldade de se obter filme negativo em tempo de guerra afastou o projeto”, ressalta o pesquisador e cinéfilo Pedro Veriano, primeiro a aceitar o convite para gravar suas considerações nessa reportagem. Somamos uma importante edição ao seu depoimento: “Ele acabava fazendo tudo: roteiro, produção, direção, montagem, assistência de fotografia e som. Chegou a despedir dois diretores de fotografia famosos quando da filmagem de Um Dia Qualquer. Só quem o entendia, na área técnica, era o paraense e amigo particular dele, Fernando Melo”.
CORTA PARA...
Close nas considerações do cineasta paraense Januário Guedes: “Convivi com o Líbero logo no início da minha carreira, quando eu ainda fazia filmes com super oito. Embora tenha enfrentado uma considerável dificuldade para fazer a transição entre o cinema mudo e o cinema falado, o Luxardo criou algo relevante: uma ficção que acaba servindo de testemunho documental de outras épocas da cidade. Ele registrou de forma importante as paisagens físicas da capital e do interior, em seu tempo”.
Numa fusão que nos traz de volta a Veriano, temos outro interessante enquadramento sobre a questão da problemática técnica: “É claro que ele não queria fazer um cinema com linguagem especifica. Queria um cinema acadêmico que fosse compreendido pelos espectadores comuns. Sua escola era realmente a da fase de transição entre cinema o mudo e o sonoro. Ficava aborrecido quando as dificuldades impediam a concretização de detalhes imaginados nos roteiros, nos quais as falas reproduziam um conceito primitivo de cinema. Muitas das falas eram declamadas e não havia a chance de som direto”.
Hora de fazer um rápido zoom sobre as opiniões que a nova geração do audiovisual paraense registra sobre Luxardo. Trazemos, assim, para o set o jovem cineasta e produtor João Inácio: “Este homem que se dedicou a fazer filmes em Belém foi o primeiro a realizar grandes investidas na produção local. Ele é um marco e um exemplo para todos que amam cinema. Sua história nos permite acreditar na real possibilidade de fazermos ficção de longa na cidade. Além de tudo, ele nos ensinou que o papel do governo é fundamental nessa investida”.
NOVO CORTE...
Um imaginário movimento de câmera nos leva a uma importante locação da biografia de Líbero: as cenas que protagonizou no ambiente político de sua época, conforme relata o pesquisador José Carneiro: “Ele chegou ao Pará por causa de seu interesse como cineasta. E aqui começou sua estreita ligação com Magalhães Barata. Fazia documentários sobre o governo do líder do PSD. Esses documentários, raros, ainda existem por ai, suponho. Depois de algum tempo, Luxardo foi cooptado por Barata, que o alçou a deputado federal. Com a queda do PSD, em 1964, via golpe militar, Libero passou a se dedicar integralmente à sua visão de Amazônia e ao seu sonho de cineasta”.
O enquadramento outra vez se abre para Pedro Veriano: “No final das contas, Libero está na história do cinema brasileiro como um dos membros dos ciclos regionais, ao lado de Alexandre Wulfes e Humberto Mauro. Ele era conhecido no meio, por isso conseguia que atores famosos, como Rodolfo Arena, viessem filmar no Pará. O que antes era execrado pela critica, como Um Dia Qualquer, hoje é louvado como uma exposição histórica”.
E é o take raro de tamanha história que alimenta as muitas homenagens que esse artista começará a receber. Uma das principais será rodada pelo Museu da Imagem e do Som, que realizará na sala Líbero Luxardo, entre os dias 5 e 9 de novembro, uma série de ações comemorativas: “Temos a missão de resguardar e difundir a memória paraense, tanto visual quanto sonora. Líbero Luxardo realizou mais de meia dúzia de produções de filmes de longa metragem, institucionais e cinejornais aqui na região. É, portanto, muito importante difundir as obras e a vida deste cineasta para as futuras gerações, que hoje mal têm contato com a história cinematográfica nacional”, ressalta Paula Macedo, diretora do MIS.
Após toda essa panorâmica, temos um plano fechado sobre um súbito riso de Januário Guedes, enquanto frisa: “Falar no Líbero me faz pensar em algo que, no final das contas, é verdade. Cinema é coisa que atrai sonhadores, visionários. A história do Luxardo prova isso. Ele chegou a ser dono de cartório e perdeu tudo, morreu pobre porque investiu o que tinha e o que não tinha na ânsia por filmar”.
SUB
Ainda uma última tomada
Antes de deixar subirem os créditos dessa matéria, uma última tomada. As cenas de um enredo afetivo. Líbero Luxardo foi casado com a célebre poeta paraense Adalcinda Camarão. A união teve como fruto um filho: Tom. Naquela que talvez tenha sido sua última entrevista, concedida a esse repórter em maio de 2000, Adalcinda também se pôs diante das lentes da lembrança e deixou gravados seus sentimentos. Sobre o primeiro encontro entre os dois, acontecido na redação da revista “A Semana”, quando ela tinha apenas dezesseis anos, disse: “Foi um encontro casual. Eu costumava freqüentar a redação, cantava nas rodinhas de violão que eles faziam. Naquele dia, eu tinha ido buscar um magazine e nos encontramos”.
A cena final da longa história que interpretaram... A cena final não foi assistida pela poeta. Quando Líbero morreu, num dia de finados, em 1980, vítima de um câncer de próstata que ele insistia em tratar como mera infecção urinária... Quando Líbero morreu, Adalcinda e o filho viviam no exterior. Sobre o fato de não ter conseguido acompanhar o enterro, ela contou: “Eu estava nos Estados Unidos e ele aqui no Brasil. Não tive tempo sequer de vê-lo pela última vez. Quando cheguei, o sepultamento já havia acontecido”.
Para o companheiro que, em um dia qualquer, transformou a Amazônia em set eterno, Adalcinda Camarão escreveu: “Vem dormir na maqueira dos meus olhos, meu amor / estou sobre a sombra da saudade / com medo que o luar / venha me descobrir toda de branco”.
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