Livro é narrado por personagem que costura histórias familiares do autor a fatos históricos do nordeste e da Amazônia
O livro “Senhora de Todos os Passos”, do escritor Carlos Correia Santos foi um dos vencedores do Prêmio IAP de Edições Literárias 2011, na categoria romance (Prêmio Haroldo Maranhão). A obra será editada e lançada pelo próprio Instituto de Artes do Pará. Esta é a terceira vez que o autor ganha o Prêmio IAP. Em 2003, ele venceu a categoria dramaturgia com o texto da peça “Nu Nery”. Em 2008, outra peça sua foi laureada: o texto “Batista”. “Senhora de Todos os Passos” é o segundo romance escrito por Correia. O primeiro, “Velas na Tapera”, venceu o Prêmio Dalcídio Jurandir, promovido pela Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, em 2008, e foi lançado em Lisboa, em junho deste ano.
O romance “Senhora de Todos os Passos” conta a saga da ousada e espirituosa Maria Xavier, personagem inspirada na avó de Carlos Correia Santos, uma nordestina que, segundo o escritor, fez o anti-êxodo. “Numa época em que a maioria do povo do Nordeste partia rumo ao sudeste, ele veio para o Norte. Foi uma mulher fantástica, que teve uma vida cheia de lances espetaculares. Testemunhou o voo do Zepelim, viveu a comoção do assassinato de João Pessoa, esteve perto do universo do cangaço. Foi muito rica e extremamente pobre. Cresci ouvindo as narrativas fabulosas que ela contava. E, justamente por isso, tornei-me escritor. Prometi que, um dia, transformaria os incríveis passos dela em um romance e, para minha grande honra, agora cumpro a promessa”, afirma o autor, emocionado.
A narrativa faz um imenso passeio por episódios importantes da História nordestina e nortista. Das ladeiras de Olinda ao barro da Transamazônica, seres fictícios e várias personalidades reais cruzam o infindável caminho de Maria Xavier. Correia transforma em personagens do livro figuras como Catulo da Paixão Cearense, Irmã Dulce, Corisco, Dadá, Dulcina de Moraes e até Dorothy Stang. “O enredo vai misturando realidade e fantasia. Exatamente como fazia minha avó. É bem aquilo de contar um conto aumentando os pontos”, diverte-se Carlos. Mas ele completa: “Há, porém, muitas vivências de fato experimentadas por minha família. Uma família de negros que tiveram que lutar muito e muito para que a sorte se transformasse e as coisas pudessem melhorar. É uma obra que respira e transpira muitas dores e alegrias reais”.
ANO BOM
O ano de 2011 tem sido produtivo para Correia. Além do recente prêmio do IAP, de ter lançado “Velas na Tapera” em Lisboa, na FNAC Chiado (o escritor é representado na Europa pelos produtores Fercy Nery e Rita Pestana) e de ter duas peças suas apresentadas com bastante êxito em São Paulo (“Perfídia Quase Perfeita” e “A Fábulas das Águas”, montadas pela Cia. Fé Cênica), Correia conquistou o segundo lugar geral da quarta edição do concorrido Seleção Brasil em Cena, edital de fomento à nova dramaturgia brasileira, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (CCBB). Carlos foi o único autor da região Norte escolhido para o projeto. O certame selecionou também um escritor do Nordeste. Os demais foram das regiões sul e sudeste. A obra com que Carlos Correia foi destacado é o monólogo “Um é Multidão”. Essa foi a segunda vez que o paraense participou da iniciativa. Em 2007, o escritor também foi selecionado para o concurso justamente com sua comédia “Perfídia Quase Perfeita”.
Criado para propiciar o contato do público com novas dramaturgias e estimular o intercâmbio entre autores, atores e diretores contemporâneos, o Seleção Brasil em Cena permite com que os 12 textos selecionados em cada edição ganhem leituras dramáticas dirigidas por grandes nomes da atual cena teatral brasileira. O texto de Correia foi dirigido por Gilberto Gawronski, ator e diretor vencedor de importantes prêmios, como o Mambembe e o Sharp. Em 2007, a obra do nortista foi dirigida por Stella Miranda, que viveu a síndica do humorístico Toma Lá Dá Cá, exibido na Rede Globo.
Apresentadas no próprio CCBB Rio, as leituras dramáticas foram realizadas por alunos formandos em escolas de teatro da capital carioca. Ao final de cada leitura, o público atribuiu notas. Os espectadores deram a Correia o segundo lugar geral na competição.
TRECHO DA OBRA
A PRIMEIRA PARTE DESSES IDOS
Ainda no Nordeste...
Quando era por volta de 1920...
Como nasci? Da poeira. Costumo repetir e repetir: nasci da poeira. Sim, houve o parto. Houve o vir do ventre. Mas para a vida inteira que me gestou, nasci da poeira. Guardo como certidão de tal fato o dizer daquele que me criou e me fez pronunciar a palavra pai. João Xavier. Era ele quem contava. Foi quando baixou o poeiral seco sem fim, ocre-carmim... Foi quando baixou aquele pó do sem tempo que ele viu vindo pela estrada a velha negra, cabelos nuvados de tão brancos. A velha com a criança no colo. Menina bronze nua. Uma estrada qualquer no entorno perdido entre a pernambucana cidade de Garanhuns e o desconhecido... Contava ele: o carro que dirigia – o Ford de Bigode – pareceu ficar mais lento sem desaceleração qualquer. Ele grudado ao volante. Alma grudada num inexplicável nó na garganta. E, por entre a poeira, aquela imagem, a imagem daquelas duas tão cheias de nada. A velha e uma menina no colo. Feito fosse uma dessas estátuas de procissão. A menina? A menina era eu. A velha? Minha avó. É só o que sei. Não foi o carro que se aproximou daquelas duas lassidões. Foi o destino que estreitou o afastamento. Estreitou, estreitou. Até que o automóvel lento freasse. Lento parasse rente à velha com a menina no colo.
- Está indo para onde, minha tia? – Foi a pergunta do motorista que mais tarde muito de minha vida dirigiria.
O que sei é que a resposta da mãe de minha mãe se fez seca:
- Oxi... – Penso que o enxergar preso na inexatidão – Tô pra num sabê dadonde vim, moço... O que dirá pra donde vô...
- E o que foi que houve, senhora?...
- Minha fia... – Suponho... Apenas suponho que o sol infindo tenha feito cintilar o resto de choro que havia nos olhos da negra anciã – Minha fia, mãe dessa menina... A bichinha morreu parindo, moço... Eu tô que num sei de mais nada... Num sei que caminho tinha atrás de mim... Num sei pra donde leva o caminho que vai pra acolá...
Sei também que ali, dentro do carro, João Xavier sentiu – de algum modo sentiu – que a vida lhe estava abrindo as pernas e dando à luz algum novo.
- Quer alguma ajuda, minha tia?
Suponho... Apenas suponho: houve a poeira do infinito no olhar que a velha deu para o motorista...
E, num ato mecânico, gerado talvez pela dor do oco... Num ato mecânico, ela estendeu os braços e ofereceu a menina para o homem. Eu... para aquele que me fez pronunciar a palavra pai... Dando olhar de infinito para o estranho, minha avó me deu.
Tudo isso assim conto porque suponho...
Imagino que João me recebeu em seus braços muito mais por desentendimento que por querer intentado. Ele em seu colo me recebeu. Diria mais tarde que me amou como filha naquele instante exato. Naquele instante exato...
Nada disseram. A velha e o motorista. Nada. Fitaram-se um pouco mais e o resto veio. Minha avó foi. João Xavier ficou. A poeira a subir e a velha de brancos cabelos – nuvados – a ir. A partir. Engolida pelo coisa alguma. Devorada pelo ocre-carmim. Foi-se ela. Foi-se. Sumiu.
E aquele que, a partir dali teria que ser meu pai, tomado pelo não se entender. Ele não entendia a si mesmo. Por que aceitara receber aquela criança? Por quê?
Foi-se minha avó. Para nunca, nunca mais.
E para a casa de João Xavier eu fui.
Eu?
Esse eu quem sou?
Sacudo-me a rir...
Estou com a cabeça apoiada no colo de minha filha, as costas esparramadas no chão frio... Ao meu redor, uma procissão. Um Círio a esperar que eu lembre... De tudo...
Então, explico. Essa quem sou?...
Maria. O nome que receberia de João. Maria. A do rumo dessa história que já iniciei a lhes conceder...
Maria.
Dos mil caminhos... Senhora de todos os passos...
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