sábado, 8 de novembro de 2008

LEMBRAR PARA NUNCA MORRER



JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 02/11/2008
O dia 02 de novembro traz ao cartaz
e à pauta a poética certeza de que
o fim da existência física pode ser
apenas uma cena recriada pelo talento

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Quando questionado sobre as razões que o levam a gastar tanto dinheiro com sua artista preferida, o paraense Ronaldo Mesquita não hesita em responder: “Paixão. Faço tudo para ficar um pouquinho mais perto dela. Invisto minhas economias sem pestanejar. Compro passagem de ônibus ou de avião. Pago hospedagem em bons hotéis. Vou atrás da minha amada cantora. Ela merece esse meu empenho”. A amada cantora em questão? Acredite: Clara Nunes. Não. Você não está lendo uma matéria antiga. Fique certo de que esta não é uma reportagem feita à época em que a diva da MPB ainda era viva. O fato é que, para Ronaldo, de algum modo – mesmo diante dos limites do irreversível – Clara continua lindamente viva.

Todo ano, nessa época do ano – sempre que o período de férias permite, é bem verdade –, o funcionário público arruma suas malas e parte para o Rio. Hospeda-se na Cinelândia e cumpre um ritual de carinho rigorosamente igual ao do tiete que vai ao show. O palco, no entanto, é o cemitério de São João Batista, em Botafogo, onde a eterna intérprete de Morena de Angola deita-se em camarim de sereno descanso. Os presentes que sempre leva são simbólicos: flores para perfumar a lembrança e velas para manter aceso o brilho de Clara. Algo de morbidez em tudo isso? De forma alguma, defende Mesquita: “Para fãs como eu, os ídolos não morrem. Nunca. Jamais”.

Hoje é, sem dúvida, o dia ideal para se tocar no assunto. Os livros abrem suas páginas, os teatros descortinam seus palcos, os discos tocam notas raras, as telas recolorem o talento. Tudo para afirmar: quem transforma a vida em arte consegue o milagre de atravessar todos os tempos. “Os grandes artistas não morrem. Isso para mim é um fato”, afirma o produtor Geraldo Vasconcelos. “Ouço os CDs de Maysa, de Elis e tenho essa convicção. É como se elas estivessem ao meu lado. Quando me emociono com suas interpretações, digo para mim mesmo: elas permanecem”.

RENASCIMENTO

O estudante de jornalismo Arthur Castro vai além. Ele acredita que o talento de ontem é tão perpétuo que consegue mesmo renascer nos talentos de hoje: “Os grandes artistas se tornam fundamentais. Por isso viram referências para outras gerações. Maysa, Elis e Clara Nunes comprovam isso. Escuto atualmente Rita Ribeiro e sinto nela uma discípula da Clara. Não no que tange às vozes. Falo do amor pela temática afro-brasileira. Com relação à Maysa... Nossa, acho que todas rendem tributo a ela de algum modo. A própria Elis foi uma sucessora dela no quesito rainha da fossa. A gravação para Debaixo da Porta é exemplo do que falo”.

Juntando-se a todo esse coro da capela do bem-querer, o ator Flávio Furtado – membro da Cia. de Teatro Madalenas – opina: “As personalidades da arte que não estão mais fisicamente entre nós, conseguem se manter no plano da memória emotiva, afetiva e até espiritual porque mexem com nosso imaginário. O artista vive uma vida comum, porém cheia de glamour. E nós, como meros mortais que somos, gostaríamos de viver pelo menos quinze minutos dessa fama”.

O escritor Marcelo Marat, por sua vez, é logo taxativo: “A arte é a única saída para esse mundo de mediocridades. A maioria das pessoas já está morta antes de morrer. Os artistas, como seres inconformados, transcendem isso. Van Gogh, por exemplo. Ou Baudelaire. Ou Pessoa com seus heterônimos. São seres que sofrem por conhecerem o absurdo e a tragédia de viver”.

DESTINOS

Alguns artistas se mostram tão senhores da eternidade que chegam a provocar arrepios. Parecem realmente saber que tudo tem um aspecto transitório, porém fatalista. Entre as estrofes da literatura produzida no Pará, o poeta que ilustra esse mistério é Mário Faustino. “Alguns biógrafos e pesquisadores apontam na obra dele o que se assemelha a uma assombrosa premonição sobre sua própria morte”, explica a voraz leitora Carmem Nunes. Faustino faleceu com 32 anos, em novembro de 1962, num acidente aéreo no Peru. Para ilustrar o que disse, ela abre o livro “O Homem e Sua Hora” – único lançado pelo autor – e lê um trecho de poema escrito por Mário antes de sua trágica partida: “Atrai-me ao despudor da luz esquerda / Ao beco de agonia onde me espreita / A morte espacial que me ilumina. / Sinto que o mês presente me assassina”. Comovida, Carmem complementa: “Nao é impressionante? Para mim, ele continua vivo. Aqui. Nas minhas mãos. Não só dentro dessa publicação (acaricia a obra), mas dentro do meu coração”.

Ainda no território das letras, a história do poeta icoaraciense Antônio Tavernard – cujo centenário foi comemorado no dia 10 de outubro – também cria belas rimas entre a arte e a superação das despedidas. “Aos dezoito anos, ele foi diagnosticado com hanseníase. Isso na década de 30. Ou seja, foi uma sentença de morte”, relata a professora de português Luiza Cavalcante. “O belo, no entanto, foi que aquele rapaz transformou toda sua dor em poesia. Ele usou a intensidade da agonia para criar trabalhos eternos. Mesmo tendo sido vencido pela doença cedo, Tavernard ainda vive graças aos seus escritos”. Uma mostra disso? Seus versos: “Tenho a vida do mar / Tenho a alma do mar”.

Talvez a memória seja como o mar citado pelo escritor. Sobre estas ondas, os barcos da recordação. Nestes barcos, os artistas. Então, que fim dar para essa reportagem? Que tal pensar que não há fim. Que, de algum modo, tudo pode ser sempre reescrito, outra vez encenado, de novo cantado? No palco que nos cerca. Em algum palco além. Ao telefone, do Rio de Janeiro, Ronaldo Mesquita avisa que não poderá mais se estender na entrevista porque chega a hora de ir aplaudir Clara Nunes. E arremata: “Se ela ainda merece? Evidente que sim. Os argentinos costumam dizer que, mesmo falecido há décadas, Carlos Gardel é uma lenda tão forte que canta cada vez melhor. Pois Clara também. Clara Nunes canta cada vez melhor”.


Um comentário:

J.BOSCO disse...

excelente matéria!!
abs