quarta-feira, 18 de abril de 2012

ENTREVISTA CONCEDIDA AO DIÁRIO DO PARÁ - COMPLETA


Partilho com vocês a íntegra da entrevista concedida à repórter do Diário do Pará, Gil Sóter. Mais uma vez, nosso imenso obrigado ao fantástico espaço concedido pelo caderno Você a nosso projeto.

CARLOS, O QUE VOCÊ VIU NA SUA VISITA ÀS RUÍNAS DO MURUTUCU?

A reação que todos nós da equipe do espetáculo BATISTA tivemos ao chegar ao local em que se encontra o resto das Ruínas do Murutucu foi de perplexidade, tristeza e indignação. O acesso é feito por meio de uma cerca quebrada, mato alto e dejetos de toda sorte. Uso a expressão “resto” de propósito porque o que está ali hoje é uma vergonhosa sobra do que já foi uma joia rara para o acervo memorialístico amazônico. A única construção ainda valentemente acessível são as paredes da antiga capela. As ervas sobem pela estrutura, a umidade se apossa dela. Teias de aranha, sujeira tomam conta de tudo. É um lugar que grita sua situação de abandono. E faz chorar qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade. Verdadeiramente nos arriscamos para chegar ao local. Mas nos dedicamos a isso pelo compromisso de fazer as fotos como ferramenta de denúncia. Sinceramente, não bastam as alegações de que o Murutucu está tombado. Os trâmites, sejam eles quais forem, precisam estar a serviço da conservação e não apenas do congelamento. Decidimos unir o espetáculo a um projeto que batizamos de “Ruínas da Memória”, através do qual convidaremos as plateias a assinarem uma petição pública para exigir providencias em prol da revitalização, manutenção, abertura ao público e divulgação do sítio histórico das Ruínas do Murutucu.

QUAL PREJUÍZO TRAZ ESSE ABONDONO PARA A MEMÓRIA DE BELÉM?

Toda conexão com a memória histórica é fundamental para que, hoje, entendamos de onde viemos e para onde podemos ir. Uma peça de roupa do ontem, um pedaço de moeda, um documento. Tudo isso pode ser senha para nos esclarecer sobre condições sociais anteriores a nossa, que influem sobre o tempo atual. Quando se trata do sitio histórico das Ruínas do Murutucu estamos falando de um complexo arquitetônico. Imaginem o peso disso. Um conjunto de construções e áreas arqueológicas apinhadas de referencias sobre o nosso passado. O lugar tem, de cara, três aspectos cruciais: tem traços arquitetônicos do célebre Landi, foi palco de circunstâncias da trágica escravidão no Pará (guardava, portanto, testemunhos sobre isso que precisavam ter sido estudados e debatidos) e foi um importante acampamento cabano. De lá, as tropas cabanas marcharam para tomar Belém durante esse que é, sem dúvida, um dos mais importantes episódios históricos do Brasil. Não escolhemos fazer as fotos de divulgação do Batista lá à toa. Escolhemos por tudo isso. Desejávamos nos embeber dessas referências e energias, que também estão lá. Deixar o Murutucu nesse estado de abandono significa cuspir sobre o peso da nossa memória e isso é simplesmente indignante.


COMO COMEÇOU A BUSCA PELA HISTÓRIA DE BATISTA CAMPOS? O QUE TE MOTIVOU A DESCORTINÁ-LA?

Eu tenho esse compromisso com o que chamo de Dramaturgia Histórico-Investigativa. Eu preciso apostar nesse segmento porque esse gênero clama por atenção. Na verdade, estamos no bojo disso. Não é por acaso que tantas produções midiáticas têm se voltado a esse condão: filmes, produtos para TV, outras peças. A arte de hoje precisa dar as mãos à História para que nos entendamos. A necessidade de falar sobre Batista Campos, que em 2012 faria 230 anos, sobre a Cabanagem é mais um passo nesse sentido. Teatro, na origem da palavra, significa “lugar de ver”. Precisamos, paraenses, nos ver no palco. Temos urgentemente que aprender a refrear essa sede de que outros nos vejam, de que estejamos no pódio do sucesso no sul e no sudeste. Isso é bom, claro que é. Mas urge que nós vejamos uns aos outros aqui, antes, primeiro. Falar de Batista Campos é falar de um homem nosso que lutou por nós. Polêmico, controverso, mas, acima de tudo libertário, que ansiava para que tivéssemos nossa identidade própria. O gancho para transformar a saga do Batista em peça me foi sinalizado em 2006, quando eu acompanhava a primeira temporada da minha peça “Nu Nery”, que fala sobre outro grande ícone nosso: Ismael Nery. O trabalho teve montagem do Grupo Palha. Foi o ator Stéfano Paixão quem primeiro me provocou sobre o Batista. Escrevi o texto, ganhei com ele o Prêmio IAP que garantiu a primeira edição em livro. O texto ganhou uma nova publicação em São Paulo, da Giostri Editora e agora chega à cena, numa realização da Companhia Teatral Nós Outros, com Hudson Andrade e participação especial de Cacau Novais. A luz é de Sonia Lopes, a trilha sonora original de Junior Cabrali, fotos de divulgação de Brends Nunes, Frederico Mendonça e Iara Correia Santos. A consultoria de direção é de Adriana Cruz.

O QUE MAIS TE CHAMOU ATENÇÃO OU FOI REVELADOR NESSA TRAJETÓRIA DE BATISTA QUE VOCÊ DESCOBRIU NESSE PROCESSO DE PESQUISA PARA A PEÇA?

O que mais apaixona em Batista Campos é a condição humana dele. Trata-se de um homem. A despeito do sacerdócio – ele era cônego subdiácono – , estamos falando de uma criatura feliz por ser de carne e osso. Era uma figura apaixonante. Um grande orador, um estrategista, um articulador, um negociador sem par. E um indivíduo de um carisma tal que arrebatou legiões, sabia falar ao povo. Batista, por uma medíocre fatalidade, morreu às vésperas da primeira tomada de Belém pelos cabanos. Fazendo a barba, escondido nas matas, feriu uma espinhal carnal que gangrenou. Diz-se que o fato dele ter morrido tão precocemente favoreceu a fragilidade interna do movimento revoltoso. Se ele tivesse se mantido no levante, possivelmente nossa história política seria outra. Era um bravo, um ousado. Foi amarrado à boca de um canhão para que os revolucionários se intimidassem e se rendessem e, nem assim, sucumbiu. Desafiou seus opositores e disse: “podem disparar esse canhão, podem me dilacerar. Nós não nos renderemos”. Isso é um exemplo colossal. É isso mesmo: mesmo que nos amarrem à boca do canhão da desmemoria, nós não podemos nos render.

QUEM FOI BATISTA CAMPOS, AFINAL? E COMO ELE ESTARÁ NO PALCO?

Batista Campos foi um sacerdote, jornalista e agitador político. Redigiu aquele que é considerado o primeiro jornal da Amazônia, O Paraense. Era um dos grandes mentores da Cabanagem. Um orador excepcional. Polêmico. Viveu sem pudor a condição religiosa e mundana. A peça tem a estrutura de uma liturgia. Nela, Batista Campos reza, diante do público, uma missa em memória da sua própria história. Todos os elementos e momentos da missa são metaforizados para que o personagem ponha a plateia diante de sua impressionante biografia. As leituras, os salmos, o sermão, a eucaristia. Todos os esses aspectos litúrgicos viram atos cênicos.

CARLOS, POUCO ANTES DE BATISTA, VOCÊ FALOU DE OUTRO PERSONAGEM IMPORTANTE DA NOSSA HISTÓRIA RECENTE, QUE FOI MARGARIDA SCHIVASAPPA. POR QUE O TEATRO PARA TRATAR HISTÓRIA? EM QUE ESSES ESPETÁCULOS PODEM CONTRIBUIR PARA O RESGATE DA MEMÓRIA?

Quando uma pessoa se senta diante de um palco, de uma forma ou de outra, ela concorda em ver. Quando pegamos essa senha e ajudamos uma plateia a se ver, a ver sua História, tentamos ajudar esse público a se entender e se transformar. Temos uma grande lacuna educacional: nosso ontem glorioso e belo não é contado e ensinado nas escolas. Um crime. O teatro não vai resolver esse problema. Isso é, antes de mais nada, uma responsabilidade educacional e a arte não tem o condão primeiro de cuidar do educar formal. O que fazemos é provocar, incitar. É como se sussurrássemos: ei, veja como somos grandes por causa daqueles que vieram antes. Mantenhamos nossa grandeza.

EM QUE PÉ ESTÃO OS PREPARATIVOS PARA ESTREIA DE BATISTA?

Estamos a todo vapor. Ensaiando fortemente às terças e quintas, vencendo as dificuldades de fazer teatro sem patrocínio. Vencendo as dificuldades de lidar com profissionais que se comprometem com o trabalho hoje e se descomprometem irresponsavelmente depois, mas seguindo. Cientes de que estamos apostando num trabalho que não é apenas um capricho de entretenimento. É um compromisso com nossa memória, senha maior para que mantenhamos nossa dignidade histórica.

SERVIÇO:

BATISTA é uma obra de Carlos Correia Santos. Texto vencedor do Prêmio IAP de Edições Culturais. Publicado pela Giostri Editora (SP). Essa montagem é uma realização da Companhia Teatral Nós Outros em homenagem aos 230 anos de Batista Campos. Espetáculo protagonizado e dirigido por Hudson Andrade. Participação especial: Cacau Novais. Consultoria de direção: Adriana Cruz. Concepção de luz: Sonia Lopes. Trilha sonora original: Júnior Cabrali. Demais fotos promocionais: Frederico Mendonça e Iara Correia Santos. Primeira temporada: dias 10, 11, 17, 18, 24 e 25 de maio, sempre às 20h30, no Sesc Boulevard. Entrada franca. Apoio cultural: Sesc Boulevard, Unipop, Revista Pará Mais e Gráfica Dmazon. Agradecimento especial a Cláudio Temporal pela preparação corporal.

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