Reproduzo, abaixo, texto com análise crítica sobre "Ópera Profano". O artigo, assinado pelo crítico Helder Bentes, foi publicado no Portal ORM. Foto de divulgação: Pedro Ferreira.
NOSSA SENHORA DE NAZARÉ É ROUBADA
Helder Bentes
“O eterno embate que não cessa de seduzir o sagrado e o profano encontra em Belém do Pará uma instigante estação. Nada mobiliza mais a maioria do povo paraense que a secular manifestação do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Um ritual de devoção que dita costumes, fascina milhões e acaba se transformando num autêntico espetáculo de fé. Posto quase em frente à Basílica de Nazaré, ajoelhado num ponto nobre do percurso das principais romarias da festividade, um cinema vem há décadas desfiando um cortante rosário de polêmicas. Dedicado à exibição de filmes de sexo explícito, o Cine Ópera é um grito mudo de inquietações que assiste diante de si o cortejo do divino. O que aconteceria se a imagem da Virgem Padroeira, a mesma que segue nas procissões do Círio, desaparecesse e surgisse dentro do Cine Ópera? Essa é justamente a partitura da trama ora apresentada”.
Assim começa a narrativa poética batizada como 'Ópera Profano', pela genialidade do paraense Carlos Correia Santos. A trama acontece dentro do Cine Ópera, cuja programação exibe filmes pornôs e atrai devotos da concupiscência da carne. As personagens são a Misteriosa (Nossa Senhora); dois Conselheiros (anjos); Tota, jovem travesti com belos traços femininos; Baby, travesti doente; Mira, travesti cinquentona; Lucas, garoto de programa; Ângelo, jovem de classe média frequentador do cinema; mãe da travesti Baby; filho da travesti Mira; sombras e um coro que recorre nas cenas.
Aproveitando o momento e o motivo da festividade do Círio de Nazaré, Carlos Correia Santos ousa chamar a atenção do público para uma reflexão a respeito do trabalho missionário realizado pela arquidiocese de Belém: 'Um cinema sujo, que exibe filmes de sexo explícito e que fica quase em frente à Basílica erguida em homenagem à devoção desta cidade... Isso não lhes parece estranho? Não lhes parece haver nisso algo a ser entendido?...' – afirma Nossa Senhora de Nazaré, representada pela Misteriosa, em diálogo com os Conselheiros, anjos que a acompanham, tentando convencê-la a não entrar no Cine Ópera.
Paralelamente a essas cenas que evocam o maravilhoso no drama, há elementos ordinários do enredo. Baby, uma travesti balzaquiana, agoniza contaminada pelo HIV, e seu último desejo é ver a pequena imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. Tota, outra travesti amiga de Baby, rouba a imagem e a leva ao cinema. A Misteriosa é a personificação do que representa essa imagem. A fala dos anjos conselheiros parece reproduzir o discurso anacrônico da beatice católica, que se nega a buscar o porquê das causas da profanação do corpo. Ao passo que o discurso da Misteriosa reproduz justamente a busca deste porquê.
Na parte ordinária da narrativa, produzida em linguagem informal e com predomínio da referencialidade, por oposição à linguagem emotiva e poética das cenas extraordinárias, observam-se as peculiaridades deste universo marginal cujo símbolo é o Cine Ópera: os preconceitos e a suposta masculinidade de Lucas, que fora abusado sexualmente na infância pelo padrasto e que – como todos os garotos de programa – vê na prostituição um pretexto para exercer sua sexualidade do modo como ela se lhe apresenta; a falta de cuidado, em todos os sentidos, ao fazerem sexo; a necessidade que os frequentadores do Ópera têm de se manterem em sigilo e os motivos que os levam a saciar seus desejos na prostituição; as tentativas de fuga da homossexualidade e as consequências desastrosas dessas fugas... Tudo isso é abordado com muita poesia em Ópera Profano.
'Por que algo que é santo não pode entrar aqui? Por quê?... Há santidade em nós também... Em algum canto esquecido de nós... há santidade' O texto também trata do desprezo vivido por muitos homossexuais rejeitados por suas famílias em razão de sua orientação sexual. A maternidade universal de Maria é a misericórdia que não se encontra em mães humanas, cujas expectativas a respeito da sexualidade de seus filhos foram frustradas, por não seguirem padrões socialmente ordinários de conduta sexual. Infelizmente, o apego a esses padrões suplanta o amor que deveria reger a relação entre pais e filhos.
Machado de Assis trabalhou a eterna contradição humana, a ambigüidade, a dualidade do homem no conto fantástico A Igreja do Diabo, utilizando-se dos elementos espaço-temporais próprios da sociedade brasileira do século XIX, para se opor à visão romântica em torno do homem, formada pelos valores religiosos contra-reformistas, desde a formação da colônia.
Em pleno século XXI, num hibridismo metalinguístico, Carlos Correia Santos desafia a rigidez acadêmica das teorias da literatura, para ousar sobre os elementos de nosso tempo e lugar, não esquecendo que o Círio de Nazaré também se renovou como mito durante toda a época machadiana, de modo que, embora em menor escala, não deixamos de justificar nossos preconceitos nessa mística do sagrado. Apesar de que 'Quem só conhece o azul do Céu quer porque quer conhecer o escuro do Inferno...'. A denúncia à hipocrisia de ignorar a realidade acontece através de frases impactantes: Na vida, o que está à margem vira escuridão./ O que não convêm aos olhos vira inexistência...
Os elementos regionais que geralmente são evocados como atração turística nesta época de outubro também aparecem na memória das personagens, ao lado das reminiscências que dão à Misteriosa a explicação que ela busca ao entrar no Cine Ópera. A maternidade é colocada em discussão e até a devoção e o culto às imagens, tão criticados pelos cristãos protestantes.
O clímax da peça fica por conta das revelações a respeito da trajetória de cada personagem. Revelações estas que lhes rendem uma aparição de Nossa Senhora. Num nível linguístico, o texto congrega poesia de primeira grandeza, entremeada com paráfrases de textos bíblicos e a reprodução das sete palavras proferidas por Jesus em sua agonia de morte, pela boca da travesti Baby
NOSSA SENHORA DE NAZARÉ É ROUBADA
Helder Bentes
“O eterno embate que não cessa de seduzir o sagrado e o profano encontra em Belém do Pará uma instigante estação. Nada mobiliza mais a maioria do povo paraense que a secular manifestação do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Um ritual de devoção que dita costumes, fascina milhões e acaba se transformando num autêntico espetáculo de fé. Posto quase em frente à Basílica de Nazaré, ajoelhado num ponto nobre do percurso das principais romarias da festividade, um cinema vem há décadas desfiando um cortante rosário de polêmicas. Dedicado à exibição de filmes de sexo explícito, o Cine Ópera é um grito mudo de inquietações que assiste diante de si o cortejo do divino. O que aconteceria se a imagem da Virgem Padroeira, a mesma que segue nas procissões do Círio, desaparecesse e surgisse dentro do Cine Ópera? Essa é justamente a partitura da trama ora apresentada”.
Assim começa a narrativa poética batizada como 'Ópera Profano', pela genialidade do paraense Carlos Correia Santos. A trama acontece dentro do Cine Ópera, cuja programação exibe filmes pornôs e atrai devotos da concupiscência da carne. As personagens são a Misteriosa (Nossa Senhora); dois Conselheiros (anjos); Tota, jovem travesti com belos traços femininos; Baby, travesti doente; Mira, travesti cinquentona; Lucas, garoto de programa; Ângelo, jovem de classe média frequentador do cinema; mãe da travesti Baby; filho da travesti Mira; sombras e um coro que recorre nas cenas.
Aproveitando o momento e o motivo da festividade do Círio de Nazaré, Carlos Correia Santos ousa chamar a atenção do público para uma reflexão a respeito do trabalho missionário realizado pela arquidiocese de Belém: 'Um cinema sujo, que exibe filmes de sexo explícito e que fica quase em frente à Basílica erguida em homenagem à devoção desta cidade... Isso não lhes parece estranho? Não lhes parece haver nisso algo a ser entendido?...' – afirma Nossa Senhora de Nazaré, representada pela Misteriosa, em diálogo com os Conselheiros, anjos que a acompanham, tentando convencê-la a não entrar no Cine Ópera.
Paralelamente a essas cenas que evocam o maravilhoso no drama, há elementos ordinários do enredo. Baby, uma travesti balzaquiana, agoniza contaminada pelo HIV, e seu último desejo é ver a pequena imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré. Tota, outra travesti amiga de Baby, rouba a imagem e a leva ao cinema. A Misteriosa é a personificação do que representa essa imagem. A fala dos anjos conselheiros parece reproduzir o discurso anacrônico da beatice católica, que se nega a buscar o porquê das causas da profanação do corpo. Ao passo que o discurso da Misteriosa reproduz justamente a busca deste porquê.
Na parte ordinária da narrativa, produzida em linguagem informal e com predomínio da referencialidade, por oposição à linguagem emotiva e poética das cenas extraordinárias, observam-se as peculiaridades deste universo marginal cujo símbolo é o Cine Ópera: os preconceitos e a suposta masculinidade de Lucas, que fora abusado sexualmente na infância pelo padrasto e que – como todos os garotos de programa – vê na prostituição um pretexto para exercer sua sexualidade do modo como ela se lhe apresenta; a falta de cuidado, em todos os sentidos, ao fazerem sexo; a necessidade que os frequentadores do Ópera têm de se manterem em sigilo e os motivos que os levam a saciar seus desejos na prostituição; as tentativas de fuga da homossexualidade e as consequências desastrosas dessas fugas... Tudo isso é abordado com muita poesia em Ópera Profano.
'Por que algo que é santo não pode entrar aqui? Por quê?... Há santidade em nós também... Em algum canto esquecido de nós... há santidade' O texto também trata do desprezo vivido por muitos homossexuais rejeitados por suas famílias em razão de sua orientação sexual. A maternidade universal de Maria é a misericórdia que não se encontra em mães humanas, cujas expectativas a respeito da sexualidade de seus filhos foram frustradas, por não seguirem padrões socialmente ordinários de conduta sexual. Infelizmente, o apego a esses padrões suplanta o amor que deveria reger a relação entre pais e filhos.
Machado de Assis trabalhou a eterna contradição humana, a ambigüidade, a dualidade do homem no conto fantástico A Igreja do Diabo, utilizando-se dos elementos espaço-temporais próprios da sociedade brasileira do século XIX, para se opor à visão romântica em torno do homem, formada pelos valores religiosos contra-reformistas, desde a formação da colônia.
Em pleno século XXI, num hibridismo metalinguístico, Carlos Correia Santos desafia a rigidez acadêmica das teorias da literatura, para ousar sobre os elementos de nosso tempo e lugar, não esquecendo que o Círio de Nazaré também se renovou como mito durante toda a época machadiana, de modo que, embora em menor escala, não deixamos de justificar nossos preconceitos nessa mística do sagrado. Apesar de que 'Quem só conhece o azul do Céu quer porque quer conhecer o escuro do Inferno...'. A denúncia à hipocrisia de ignorar a realidade acontece através de frases impactantes: Na vida, o que está à margem vira escuridão./ O que não convêm aos olhos vira inexistência...
Os elementos regionais que geralmente são evocados como atração turística nesta época de outubro também aparecem na memória das personagens, ao lado das reminiscências que dão à Misteriosa a explicação que ela busca ao entrar no Cine Ópera. A maternidade é colocada em discussão e até a devoção e o culto às imagens, tão criticados pelos cristãos protestantes.
O clímax da peça fica por conta das revelações a respeito da trajetória de cada personagem. Revelações estas que lhes rendem uma aparição de Nossa Senhora. Num nível linguístico, o texto congrega poesia de primeira grandeza, entremeada com paráfrases de textos bíblicos e a reprodução das sete palavras proferidas por Jesus em sua agonia de morte, pela boca da travesti Baby
Um comentário:
Uma das desvantagens de morar no interior é não poder assistir a espetáculos como esse. Venho acompanhando pelo blog o lançamento da peça, e lamento muitíssimo não estar em Belém nesse período. Espero que haja outras oportunidades de ver em cena um texto seu, Carlos.
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