quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MAIS UM ACORDE DA CRÍTICA DO MESTRE HELDER


Helder Bentes presenteia toda a equipe de ÓPERA PROFANO com mais um artigo crítico sobre a peça. Abaixo:

ÓPERA PROFANO: A EXPERIÊNCIA DE UM GRANDE ESPETÁCULO TEATRAL

Por Helder Bentes
Professor e Crítico de Literatura

Desde que o teatro renascentista e humanista italiano rompeu com as tradições do teatro medieval, a montagem de espetáculos teatrais experimenta de evoluções cênicas a mecanismos de infraestrutura, permitindo maior versatilidade nas representações. Mas toda essa dinâmica só acontece em função da cena, isto é, da ação que dá vida às personagens.

Frutos da imaginação criadora do premiado dramaturgo paraense Carlos Correia Santos, as personagens Baby, Tota, Mira, Lucas e Ângelo, do musical Ópera Profano, receberam, pela primeira vez, o “sopro da vida”, sob a direção de Guál Dídimo e Haroldo França.

Ao lado do fantástico representado pela Misteriosa (Cacau Novaes) e seus conselheiros (Marlene Silva e Haroldo França), essas personagens dão o recado contra o preconceito sexual e religioso que impera em nossa sociedade.

O espaço cênico é o Cine Ópera, “um cinema sujo, dedicado ao prostituir-se” – como afirma um dos conselheiros da Misteriosa, representando a voz da sociedade que, a despeito de todos os avanços da pesquisa humanista e da antropologia teológica cristã, ainda cultivam preconceitos e julgamentos que certamente seriam muito mais condenáveis para Jesus do que a prática da prostituição em si. Digam-no as Marias Madalenas da vida. Só elas sabem a dor e a delícia de serem o que são.

A personagem evangélica que seria vítima de apedrejamento, não fosse a sabedoria divina de Jesus, na peça de Carlos Correia Santos, é representada por Baby, Tota, Mira (três travestis) e Lucas, um garoto de programa que ganha a vida no Cine Ópera.

Baby é vivida pelo ator Léo Meneses, para quem a personagem não deve ser engraçada, pois se trata de uma travesti contaminada pelo HIV, cujo último desejo é ver a imagem de Nossa Senhora de Nazaré. A travesti começa a agonizar na véspera do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, bem na hora da saída da trasladação (procissão que leva a imagem da Virgem à Catedral de Belém, donde sai a procissão do Círio de Nazaré, no segundo domingo de outubro). As condições psicológicas da personagem, alvos da investigação amorosa da Misteriosa, e a dimensão espaço-temporal de Baby, ao longo da trama, justificam a preocupação do ator que, para dar vida a Baby, precisou contextualizá-la tal qual fazia Fernando Pessoa com seus heterônimos. “Imaginei Baby em três momentos de sua vida. Aos 13 anos, um menino humilde, um adolescente homossexual afetado. Depois aos 20, já se prostituindo, numa vida marginal. E finalmente aos 30, já doente” – explica o ator, que exerce sua especialidade em canto lírico no espetáculo e atua pela primeira vez no transgênero gay.

Tota é a travesti que se solidariza com o último desejo de Baby e comete a estupidez de roubar a santa da capela do Gentil Bittencourt, um tradicional colégio de freiras da capital paraense, donde tradicionalmente sai a trasladação. Representada pelo ator e diretor teatral Dário Jaime, Tota rouba a imagem da Virgem e a cena da peça em vários momentos, pela irreverência e simpatia que Dário lhe imprime. O ator é paraense da Vigia, faz teatro há 12 anos e não é a primeira vez em que atua na montagem de um texto literário. Professor de Língua Portuguesa, ele entende perfeitamente bem a fortuna literária que é o texto de Ópera Profano. Também contextualizou Tota, com a ajuda do próprio Carlos Correia Santos, e mergulhou no processo caótico da personagem, o que o ajudou bastante a lhe dar vida. Questionador e ousado, Dário Jaime parece haver feito uma Tota meio à revelia da direção do espetáculo, no exercício pleno de sua liberdade artística.

O também professor e ator Fábio Tavares é quem vive a personagem Mira, travesti cinquentona que representa, ao lado de Nossa Senhora, o papel social das mães. Só que Mira é o lado ideologizado desta função materna, que tanto fora combatido pelo saudoso psiquiatra José Ângelo Gaiarsa. Formado em teatro desde 2008, Fábio Tavares vive, na verdade, três personagens em cena. Em dois deles exerce sua formação em canto lírico pela UEPA. Além da travesti Mira, ele vive a mãe de Baby, num retrocesso temporal, e o lado masculino de Mira, que não pudera exercer seu lado materno na paternidade. Trata-se de personagens tranquilos e equilibrados, mas Mira tem um lado malicioso e uma habilidade de dançar que também encantam o público.

O garoto de programa Lucas é vivido pelo ator Rafael Feitosa, estudante da Escola de Teatro e Dança da UFPA e dançarino da Banda Cheiro Verde, Rafael tem um corpo escultural e protagoniza duas das mais polêmicas cenas da peça, a do beijo gay e a do nu frontal masculino. Apesar disso, Rafael explica que o mais difícil é cuspir na imagem de Nossa Senhora de Nazaré em cena. Ele se declara católico e desabafa o quanto é difícil, sendo devoto de Nossa Senhora, fazer um personagem que considera mais santas as angústias que tem na alma. Apesar dessa dificuldade, desde a primeira cena, em que Lucas apresenta-se ao público como o corpo que é “cama para se deitar qualquer”, Rafael Feitosa demonstra realmente que cultivou a alma do personagem.

A grande revelação desta primeira montagem de Ópera Profano é o ator Tiago de Pinho, que vive Ângelo, um gay no armário, apaixonado por Lucas. Estudante de classe média que representa os puros que querem “gozar rápido e sem compromisso”, Ângelo reproduz o discurso hipócrita de quem depende da aprovação dos outros, é dominado pelo medo e por uma insegurança devastadora que corroi sua auto-confiança. O ator que vive Ângelo não tinha experiência teatral nenhuma, inscreveu-se para participar dos testes de seleção para a formação do elenco e ganhou o papel. Seu desempenho em cena e o feedback empático do público não só testificam a sacada de Carlos Correia Santos em se inspirar na realidade, para reproduzir esses tipos sociais, como também derruba por terra o mito das sistematizações acadêmicas como pré-requisito único para a práxis.

Com a devida autorização do autor, os diretores da montagem defendem um teatro musical, uma coexistência entre poesia e música, bem ao modo do que aconteceu na literatura lusa até meados do século XV e que a indústria cultural contemporânea, sobretudo a paraense, parece ignorar. Os atores entoam 17 canções em cena, assessorados pela sonoplastia de Ramón Rivera e Armando de Mendonça, que chegaram a um consenso no processo de criação de melodias, a partir de formações clássicas em instrumentos de corda. O espetáculo também conta com a participação especial da companhia Mirai, na composição das coreografias, e estará em cartaz até domingo, sempre às 20h00, com entrada a 10,00 (dez reais).

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