Canal nacional publica entrevista de duas páginas com o autor da peça "Ópera Profano"
Uma bela conquista. Pela segunda vez, um dos mais importantes canais brasileiros especializados em pautas sobre a diversidade abre espaço para a obra do dramaturgo paraense Carlos Correia Santos. Em novembro, o Mix Brasil, do UOL, publicou matéria sobre a estreia da peça “Ópera Profano”, criada pelo escritor e dirigida por Guál Dídimo e Haroldo França. O canal agora publica uma extensa entrevista com Correia. Na matéria, assinada pelo jornalista Neto Lucon, Carlos fala sobre “Ópera Profano”, sobre seu novo blog de contos e sobre o foco do canal: sexualidade.
Aqui, reprodução da entrevista. No post abaixo deste, o link para acessar a entrevista no site do UOL
21/12/2010 - 14h58
Por : Neto Lucon
Autor de peça sobre travestis religiosas diz que
Nossa Senhora é a face feminina de Deus
Dramaturgo Carlos Correia conversa com
o Mix sobre peça polêmica
Em 2010, Belém do Pará contou com um musical no mínimo polêmico: Ópera Profano. A premiada peça, escrita por Carlos Correia, traz travestis e garotos de programa aliados à religiosidade de Nossa Senhora de Nazaré. Ou seja, as travestis, ao contrário de qualquer estereótipo direcionado ao grupo, propagam o arquétipo da maternidade da santa.
Em entrevista ao Mix, o dramaturgo, poeta e romancista Carlos Correia fala sobre a peça, a relação de suas obras com a comunidade LGBT e sobre o blog Mesmo que Não Queiras Eu te Contos, em que reúne os melhores contos, muitos sobre o público gay. Para ele, Nossa Senhora é a face feminina de Deus. Veja:
Carlos, antes desse musical, você já abordou a comunidade LGBT nos seus textos e produções?
Sim, tenho vários trabalhos em que mergulho na temática LGBT. O início dessa relação literária foi com o prêmio que ganhei em 1999 no concurso de textos do gênero promovido por uma editora carioca, a Litteris. Mas ainda era um início tímido. Outro momento marcante é com a peça NU NERY, um texto no qual revisito a vida e a obra do célebre poete e artista plástico Ismael Nery. A dramaturgia investiga a relação artístico-afetiva que Ismael travou com sua esposa Adalgisa Nery e com o amigo do casal, o poeta mineiro Murilo Mendes. Há uma tensão homoafetiva na relação entre os dois.
Em Ópera Profano, os símbolos considerados marginais estão aliados a outros considerados divinos. Como surgiu essa ideia?
Nasceu da minha inquietação. Sou inquieto. Eu quero falar. Quero meter meu bedelho. E a dramaturgia é uma ferramenta sine qua non para isso. Desde adolescente, sempre me inquietou, por exemplo, o fato de que, aqui em Belém, existe um célebre cinema de filmes pornográficos que fica bem em frente à Basílica Santuário de onde sai e onde termina o famoso Círio de Nazaré. O cinema é um ponto de encontro de gays, garotos de programa, travestis, toda a fauna dos ditos excluídos, e também pais de família que escondem seus desejos homfoafetivos e os liberam no cinema. Seres que usam as sombras do cine Ópera para saciar seus prazeres, suas carnes. Tudo isso bem em frente ao símbolo do divino. Isso é super latino-americano!
Mas você não parou por aí. Trouxe a polêmica presença de Nossa Senhora...
É o eterno embate entre o sagrado e o profano. Então, pensei: e se tudo isso se misturasse? E se Nossa Senhora entrasse nesse cinema? Esses travestis, esses garotos de programas, todos esses gays são tão filhos de Deus quanto quaisquer outros que acompanham o Círio. Então nasceram as cenas, a obra, a dramaturgia que foi criada sob forma de musical para metaforizar o nome do cinema Ópera, Cine Ópera. Há cinemas como o Ópera em todo o Brasil e é, portanto, uma história brasileira.
Unir grupos tão discriminados como travestis e garotos de programa à religiosidade gerou polêmica. Houve rejeição do público de Belém?
A peça é um sucesso. Mas as manifestações de intolerância acontecem sempre. Pessoas que se levantam e se retiram, aviltadas. Pessoas que fazem comentários pesados na internet. Mas também pessoas que se comovem, que se encantam, que se permitem entender. Porque, no fundo, a questão é essa: permitir-se entender.
Você procurou humanizar esses personagens marginais. Como se deu esse processo?
A peça discute, acima de tudo, o colossal arquétipo da mãe. As três travestis em cena são, falam, tratam ou explicitam aspectos da maternidade. E eu quis criar esse choque: quis fazer a platéia entender que o materno pode, sim, estar num travesti. Nossa Senhora é a grande representação do materno. O garoto de programa é a voz da ira. Foi violentado quando adolescente pelo padrasto. A cena mais dramática da peça se dá quando o garoto volta ao passado e conta como foi violentado. Sombras invadem o palco e copulam com ele a força. Sombras do padrasto
Além da questão maternal, elas também são religiosas...
As três travestis em cena são religiosas, profundamente religiosas. A que está morrendo, vítima de HIV, sonha em se aproximar da Santa porque foi rejeitada por sua mãe. Ela acredita que a Virgem, sim, é capaz de entendê-la. Tem a travesti que cuida de todos e que esconde um segredo: tem um filho.
Com tantos símbolos polêmicos, a peça não chega a cair no sensacionalismo?
Sempre tive muito receio disso. Nunca quis que a peça virasse um mote escandalizante, algo que chamasse a atenção meramente pelo jocoso. A minha grande alegria é ver que tenho conseguido isso. Primeiro quando o texto ganhou o Prêmio Cidade de Manaus. Talvez para o resto do país seja difícil entender isso, mas Belém e Manaus têm pelejas históricas. Dificilmente uma abaliza a outra. Quando ganhei o prêmio em Manaus, já pude perceber a força que o texto tinha para quebrar preconceitos. Depois ao ver as pessoas saírem emocionadas, mexidas, tocadas. Mais que buscar polêmica, a peça é um grito de humanização.
Você é religioso?
Sim, sou sim. E isso é que é bacana. Acredito em Deus, Nossa Senhora de Nazaré. Sou daqueles que acompanham o Círio, que se emocionam com a passagem da Santa na berlinda. Eu acredito em Deus, mas num Deus que é também Deusa. Acredito numa força criadora que é hibrida e entendo Nossa Senhora como a face feminina desse Deus.
Uma bela conquista. Pela segunda vez, um dos mais importantes canais brasileiros especializados em pautas sobre a diversidade abre espaço para a obra do dramaturgo paraense Carlos Correia Santos. Em novembro, o Mix Brasil, do UOL, publicou matéria sobre a estreia da peça “Ópera Profano”, criada pelo escritor e dirigida por Guál Dídimo e Haroldo França. O canal agora publica uma extensa entrevista com Correia. Na matéria, assinada pelo jornalista Neto Lucon, Carlos fala sobre “Ópera Profano”, sobre seu novo blog de contos e sobre o foco do canal: sexualidade.
Aqui, reprodução da entrevista. No post abaixo deste, o link para acessar a entrevista no site do UOL
21/12/2010 - 14h58
Por : Neto Lucon
Autor de peça sobre travestis religiosas diz que
Nossa Senhora é a face feminina de Deus
Dramaturgo Carlos Correia conversa com
o Mix sobre peça polêmica
Em 2010, Belém do Pará contou com um musical no mínimo polêmico: Ópera Profano. A premiada peça, escrita por Carlos Correia, traz travestis e garotos de programa aliados à religiosidade de Nossa Senhora de Nazaré. Ou seja, as travestis, ao contrário de qualquer estereótipo direcionado ao grupo, propagam o arquétipo da maternidade da santa.
Em entrevista ao Mix, o dramaturgo, poeta e romancista Carlos Correia fala sobre a peça, a relação de suas obras com a comunidade LGBT e sobre o blog Mesmo que Não Queiras Eu te Contos, em que reúne os melhores contos, muitos sobre o público gay. Para ele, Nossa Senhora é a face feminina de Deus. Veja:
Carlos, antes desse musical, você já abordou a comunidade LGBT nos seus textos e produções?
Sim, tenho vários trabalhos em que mergulho na temática LGBT. O início dessa relação literária foi com o prêmio que ganhei em 1999 no concurso de textos do gênero promovido por uma editora carioca, a Litteris. Mas ainda era um início tímido. Outro momento marcante é com a peça NU NERY, um texto no qual revisito a vida e a obra do célebre poete e artista plástico Ismael Nery. A dramaturgia investiga a relação artístico-afetiva que Ismael travou com sua esposa Adalgisa Nery e com o amigo do casal, o poeta mineiro Murilo Mendes. Há uma tensão homoafetiva na relação entre os dois.
Em Ópera Profano, os símbolos considerados marginais estão aliados a outros considerados divinos. Como surgiu essa ideia?
Nasceu da minha inquietação. Sou inquieto. Eu quero falar. Quero meter meu bedelho. E a dramaturgia é uma ferramenta sine qua non para isso. Desde adolescente, sempre me inquietou, por exemplo, o fato de que, aqui em Belém, existe um célebre cinema de filmes pornográficos que fica bem em frente à Basílica Santuário de onde sai e onde termina o famoso Círio de Nazaré. O cinema é um ponto de encontro de gays, garotos de programa, travestis, toda a fauna dos ditos excluídos, e também pais de família que escondem seus desejos homfoafetivos e os liberam no cinema. Seres que usam as sombras do cine Ópera para saciar seus prazeres, suas carnes. Tudo isso bem em frente ao símbolo do divino. Isso é super latino-americano!
Mas você não parou por aí. Trouxe a polêmica presença de Nossa Senhora...
É o eterno embate entre o sagrado e o profano. Então, pensei: e se tudo isso se misturasse? E se Nossa Senhora entrasse nesse cinema? Esses travestis, esses garotos de programas, todos esses gays são tão filhos de Deus quanto quaisquer outros que acompanham o Círio. Então nasceram as cenas, a obra, a dramaturgia que foi criada sob forma de musical para metaforizar o nome do cinema Ópera, Cine Ópera. Há cinemas como o Ópera em todo o Brasil e é, portanto, uma história brasileira.
Unir grupos tão discriminados como travestis e garotos de programa à religiosidade gerou polêmica. Houve rejeição do público de Belém?
A peça é um sucesso. Mas as manifestações de intolerância acontecem sempre. Pessoas que se levantam e se retiram, aviltadas. Pessoas que fazem comentários pesados na internet. Mas também pessoas que se comovem, que se encantam, que se permitem entender. Porque, no fundo, a questão é essa: permitir-se entender.
Você procurou humanizar esses personagens marginais. Como se deu esse processo?
A peça discute, acima de tudo, o colossal arquétipo da mãe. As três travestis em cena são, falam, tratam ou explicitam aspectos da maternidade. E eu quis criar esse choque: quis fazer a platéia entender que o materno pode, sim, estar num travesti. Nossa Senhora é a grande representação do materno. O garoto de programa é a voz da ira. Foi violentado quando adolescente pelo padrasto. A cena mais dramática da peça se dá quando o garoto volta ao passado e conta como foi violentado. Sombras invadem o palco e copulam com ele a força. Sombras do padrasto
Além da questão maternal, elas também são religiosas...
As três travestis em cena são religiosas, profundamente religiosas. A que está morrendo, vítima de HIV, sonha em se aproximar da Santa porque foi rejeitada por sua mãe. Ela acredita que a Virgem, sim, é capaz de entendê-la. Tem a travesti que cuida de todos e que esconde um segredo: tem um filho.
Com tantos símbolos polêmicos, a peça não chega a cair no sensacionalismo?
Sempre tive muito receio disso. Nunca quis que a peça virasse um mote escandalizante, algo que chamasse a atenção meramente pelo jocoso. A minha grande alegria é ver que tenho conseguido isso. Primeiro quando o texto ganhou o Prêmio Cidade de Manaus. Talvez para o resto do país seja difícil entender isso, mas Belém e Manaus têm pelejas históricas. Dificilmente uma abaliza a outra. Quando ganhei o prêmio em Manaus, já pude perceber a força que o texto tinha para quebrar preconceitos. Depois ao ver as pessoas saírem emocionadas, mexidas, tocadas. Mais que buscar polêmica, a peça é um grito de humanização.
Você é religioso?
Sim, sou sim. E isso é que é bacana. Acredito em Deus, Nossa Senhora de Nazaré. Sou daqueles que acompanham o Círio, que se emocionam com a passagem da Santa na berlinda. Eu acredito em Deus, mas num Deus que é também Deusa. Acredito numa força criadora que é hibrida e entendo Nossa Senhora como a face feminina desse Deus.
Ópera e Profano não seria principalmente uma crítica? Uma crítica social ao cenário religioso e sexual de Belém?
Perfeitamente. Belém tem uma tradição cultural muito austera, pois ainda paira na cidade certo palco francês. É preciso profanar um pouco tudo isso. O que é o profano? Na origem da palavra, é o que esta fora do templo. Então, saiamos dos templos culturais e religiosos, permitamo-nos vir às ruas e ver que somos o mesmo grão. Diversos, mas fruto do mesmo grão. É uma crítica ao Brasil, na verdade. Ainda mistificamos muito a sexualidade, o que é uma grande tolice. Somos todos sagrados e profanos sem que isso deva causar ruído algum.
De qual maneira mistificamos a sexualidade?
Mistificamos tudo aquilo que não entendemos. Se está fora dos nossos padrões mais banais de entendimento, merece virar um quê a se estranhar. Falo mistificar no sentido de criar mistério. O travesti é exatamente isso: por não ser o óbvio para muitos, vira um mistério de entendimento. Então, o mais fácil é demonizar. Porque foi isso que a fé católica ensinou ao longo dos séculos: o que não está na esfera de entendimento e aceitação, tem que ser queimado na fogueira. Transformamos essa fogueira e talvez ela não seja mais feita com madeira e combustão, mas ainda existe. É a fogueira da intolerância. Quando um jovem quebra uma lâmpada fluorescente no rosto de outro só porque o julga mistério de entendimento, ele está lançando essa pessoa à fogueira.
Carlos, você fica ligado nas questões de militância LGBT? Acompanha noticiários envolvendo o tema gay?
O tempo inteiro. É minha obrigação. Claro que sim. Eu quero ver, quero saber. Tenho que manter meus olhos atentos. Eu penso que um escritor, que um artista é um catalisador do que acontece em seu tempo. Eu tenho que mergulhar nos ódios e amores do meu tempo. Todos eles. Porque isso é a minha matéria de criação. É para falar do meu hoje que sou um escritor. De algum modo, aquela lâmpada foi quebrada no meu rosto também.
Vou falar de algo que me incomodou. Por que nos seus textos o artigo para travesti é sempre no masculino (o travesti)? E por que não selecionaram travestis de verdade para protagonizarem o musical?
Muito bom tocar nesse assunto. Uma das nossas primeiras vontades era ter de fato travestis em cena. Mas aí esbarramos numa dificuldade: o receio dos próprios travestis. Não conseguimos encontrar. Tínhamos outra dificuldade: por se tratar de um musical, precisávamos de atores-cantores. No final, fechamos um elenco que é de ouro, que vai para a cena com muita vontade de mostrar a alma do travesti. E penso que chegam lá. Quanto ao artigo, é algo a se discutir. “A” travesti ou “o” travesti, acho belo se isso pudesse gerar um debate. Uso “o” porque acho bonita a ambigüidade que causa.
Sei que você vai estrear o infanto-juvenil Ludique. Ele tem temática LGBT?
Não, ele não tem. Mas adianto que meu sonho é escrever um texto para a infância e juventude que mergulhe no tema LGBT. Acho perfeitamente possível e necessário. Mas tem algo que merece ser destacado ainda sobre a Ópera Profano. Ela também foi montada por um grupo de adolescentes da rede pública, jovens na faixa de 14 e 17 anos, incentivados por um mega professor de Belém, o mestre Helder Bentes. Foi uma polêmica. A sim, foi uma mega polêmica. Claro que houve inúmeros cortes e adaptações, mas a peça foi montada por esses jovens e apresentada na comunidade deles, no salão de uma igreja (risos).
Você lançou um blog de contos atualmente... O primeiro já traz a história de uma travesti? Pode adiantar algo?
Sim, o primeiro conto que fiz questão de postar é justamente uma narrativa protagonizada por um/uma travesti: Lady B. A ideia de criar o blog surgiu da necessidade de organizar em um só canal os meus contos. Eles estavam muito dispersos. Meu próximo romance é voltado à temática. Chama-se Príncipes. Uma história de amor ambientada no século XIX, conta a relação de um senhor de engenho com um ex-escravo. Foi fruto de uma pesquisa que tenho feito sobre a homossexualidade no Século XIX.
Ópera Profano volta no início de 2010. Pensa em encenar a outros Estados?
Com certeza! Aqui em Belém voltamos em maio. Mas já começamos a nos preparar para viajar. O grande desafio é o patrocínio. As empresas têm resistido em nos patrocinar aqui, e isso é uma prova de preconceito. Para você ter uma ideia, um dos nossos apoiadores não quer nem ser citado. Ele apóia, mas não quer a marca divulgada, pode? Decidimos não trabalhar mais com ele, queremos marcas que tenham coragem de ser o que são.
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