domingo, 24 de agosto de 2008

PREFÁCIO DE PAES LOUREIRO PARA POETICÁRIO


NÃO HÁ CHAVE PARA O MISTÉRIO...


(...) O livro Poeticário de Carlos Correia Santos é um livro de poesia. Poeticário, já no seu nome, estimula jogar-se ao gosto do poeta, com os algorítimos da palavra título. Poeticário. Poe. Ética. Rio. Poética. Poético. Icário! Logo em seguida, oferecendo como chave ao cofre simbólico de seu procedimento poético, numa epígrafe explicativa, diz sonhar o significado das palavras do dicionário. Quer dizer, não é na lógica da razão da língua que ele vai buscar o sentido das palavras da tribo dos seus poemas. É na imaginação. No sonho.

A poesia de Carlos Correia Santos, neste livro, usa as palavras ou a linguagem, como quem faz dobraduras de papel. Uma espécie de "origame" de palavras, dobrando as sílabas, vincando fonemas, fazendo brotar de palavras imprevistas palavras. Cada palavra como um cofre de palavras. Espelhos paralelos de significações e formas. Sabe contornar o risco daí decorrente, isto é, deixar que o prazer do jogo verbal se torne artifício. Mesmo que fossem artifícios de um artífice. O poeta sabe muito bem evitar esse risco. E também sabe que poesia se faz com palavras, é verdade, mas palavras carregadas de significação.

(...) Penso que a poesia é a encantaria da linguagem. O poeta é um pescador com o anzol do imaginário, sentado na várzea do devaneio. No rio da linguagem padrão ele mergulha a sua linha e vai buscar essas entidades submersas na língua, na cultura, na memória para torná-las a própria superfície sensível do rio-poesia-linguagem. No anzol pode vir uma imagem, um pedaço de palavra, um submarino sonho naufragado.

Em Poeticário há bons exemplos desses mergulhos na encantaria da linguagem. "Nada, nada que se compreenda" é um deles. Outro é "Blues". Aqui há desconcerto do mundo, da língua, do verso. O verbo concebido com pecado. Há uma espécie de neo-romantismo pós-moderno, o prazer da ironia, uma discreta picardia da instigação delicada.

Há, também, o gosto de jogar com a expressão, de surpreendê-la, de surpreender com ela. Não propriamente com trocadilhos. Talvez, pelo gosto do paradoxo (Desatina!, diz a rotina). Não é uma poesia que busque o vasto campo das significações da cultura ou da tradição técnica. Quer a brevidade, a transitoriedade das coisas, o instante eterno que passa (Tod'Efêmero). Flexiona o verbo de modo inusitado e provocador de novas flexões. Violenta a língua padrão para enveredá-la no bosque do desvio da norma, a fim de poetizá-la. Busca o contraste, as inversões – da norma, da língua ou da significação (Familiário). Domina o ritmo e joga com ilusórias dissonâncias, quando se pensa que vai cair no esperado. Muitas vezes sugere um poema hermético. Pura ilusão. O poema quando lido, relido, lido, se vai abrindo como as portas de um mistério (Ecos de egos).

Todo poeta é um vidente da infância. Não como quem faz o caminho do retorno. Mas, aquele que leva a infância, instalando-a onde demarca seu reino de utopias. Ou então, buscando-a sempre no futuro. Não a infância como estado. A infância como liberdade de ser a de se incorporar no mundo como linguagem livre. Como afetividade aurática. Essa afetividade em plenitude da infância que enlaça o poeta ao mundo e que faz o estranhamento cativante do leitor com relação a ele. O poeta: um ser alado e leve, como queria Platão. Quer dizer: um homem adulto pesado e terrenal com a infância o tornando leve e alado.

Carlos Correia Santos é poeta. Preserva a dignidade viva e dinâmica da língua. Celebra sua energia sem a ela submeter-se. Como um amante a ela se submete enquanto a submete. Sabe acariciá-la no enlace devoto, mas, também, sabe dobrá-la quando a paixão de criar requer. Semelhante ao domador de uma égua selvagem, domina a língua pela cauda, para, ao mesmo tempo, cavalgá-la. Como poeta, já demonstra sua originalidade e quer ocupar o seu lugar distinto. O merecido lugar dos criadores, na mente e no coração dos que o lêem.



João de Jesus Paes Loureiro (Poeta e Professor de Estética)

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