JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 26/10/2008
CADERNO MAGAZINE
Edição de 26/10/2008
Em entrevista exclusiva ao
Magazine, uma das mais
emblemáticas artistas do País
fala de vida, política e amor
CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria
Os minutos em que se aguarda a chegada de Elke Maravilha para uma entrevista podem virar argumento de um louco curta metragem. São muitas as imagens que vêm à cabeça: a marca de batom vermelho berrante na bochecha do Chacrinha. Luana Piovani interpretando-a no filme sobre Zuzu Angel. Cabeleiras colossais. Botas que nunca terminam. Acessórios impensáveis.
A dúvida é: que roteiro pode ter um encontro com uma figura tão emblemática? Como registrar uma artista com tantos tons? Filha de russos e alemães, criada na cidade mineira de Itabira, sem uma pátria oficial (leia o texto e entenda), foi presa durante a ditadura, mas libertou tabus. Ela esteve em Belém, na última quarta-feira, para o lançamento da coleção de acessórios do estilista Beto Kelner. O projeto utiliza a mão-de-obra artesanal de comunidades solidárias do Recife. Alguns dos trabalhos de Kelner podem ser vistos em novelas globais.
Nesta entrevista, Elke nos toma no colo com sua gargalhada que parece mãe de muitas vivências e fala. Conta muito. Diz tudo com a seriedade de quem sabe que em todos há um pouco dela e nela há muito de todos nós.
Nascida na Rússia. Criada em Itabira. Modelo de Zuzu Angel. Jurada do Chacrinha. Qual é o segredo maravilhoso para se atravessar tantas fases sem se perder?
(Tudo começa com uma gargalhada enorme): Criança, eu nunca me achei. Por isso, eu nunca me perdi! (O riso grande e farto toma conta do ambiente. Na retomada do fôlego, uma explicação): Só preciso dizer que fui muito mais amiga da Zuzu, que modelo. Cheguei a desfilar para ela. Mas modelo mesmo eu fui de Guilherme Guimarães.
Foste considerada inovadora nas passarelas. Na tua opinião, quais inovações trouxeste?
É verdade. Devo ter trazido inovações. Primeiro que sou um trem diferente mesmo. Sou diferente desde pequena. Tenho uma miscigenação muito grande na minha família. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, meu avô era azerbaijano, minha avó era mongol. Aliás, a primeira vez que eu contei que minha avó era mongol, olharam para mim e disseram: e agora? Será que isso pega? (Nova gargalhada. E ela retoma a seriedade da resposta). Meu pai me cutucou muito: pense, reaja, perceba.
O desfile constante do tempo te incomoda?
De modo algum. Tenho 63 anos. A maioria das pessoas da minha idade fica olhando lá para trás. Aí acabam virando estátuas de sal, né? (Gargalhada) Elas ficam ultrapassadas. O tempo é aqui e agora. O passado foi ótimo. Mas passou. O que eu vivi foi vivido e pronto.
Ficas incomodada em ser tida como um personagem?
Já me incomodou um pouco. Agora não me incomoda nadinha (Risos). Mas realmente muitos acham que eu sou um tipo apenas. Há pouco tempo, a Júlia Rezende, filha de Sérgio Rezende, que fez o filme Zuzu Angel, decidiu realizar um documentário sobre mim. No inicio das filmagens, ela me propôs um desafio: você tiraria isso tudo? (Elke corre as mãos de cima a baixo do corpo, indicando os detalhes todos de sua indumentária única). Aí, eu disse: para você eu tiro. Vai ser como tirar a calcinha. E a gente não tira a calcinha para todo mundo. Mas eu tiro (Risos). E fiz. Acordando mesmo. Sem nada. No final, ela admitiu: não houve diferença nenhuma.
Então, é realmente grande o teu receio de se desapegar da “calcinha” que te torna única...?
É claro, meu amor! Nós, seres humanos, nascemos incompletos e temos que nos completar. E isso é uma sina da nossa espécie. Gato não precisa de banho de loja, precisa? Macaco não precisa de banho de loja. Mas nós precisamos. Nós somos muito feios. Até o mais lindo dos humanos é também muito feio. A gente tem que se melhorar por dentro e por fora.
Agora, Elke, vamos falar um pouquinho sobre a questão da memória. Esse país tem um problema de memória e isso é grave...
Olha, eu não sei, não. Na verdade, é uma faca de dois legumes, como diria Vicente Mateus. A falta de memória é incomodativa, sim, sem dúvida. Mas, por outro lado, há um aspecto positivo: esse país não guarda mágoas. Nós não ficamos naquela de “aí, o que fizeram comigo!”. Os povos que muito cultivam a memória acabam nutrindo muitos ranços.
Mas eu vou insistir nessa questão do lembrar. Talvez muita gente hoje não recorde nem saiba, mas tiveste uma considerável atuação política num período importante da História recente. Por conta dos teus protestos contra o golpe militar, perdeste a cidadania brasileira durante a ditadura. Foste tornada apátrida (pessoa sem pátria oficial). Isso doeu? Ainda dói?
Nãaaaao (E o não se prolonga com musicalidade doce). Claro que não. Meu amor, meu pai foi perseguido por Stalin, na Sibéria, durante seis anos. Eu fiquei presa seis dias na ditadura de Garrastazu Médici. Café pequeno (Gargalhada enorme. E a repetição suave e convicta): Café pequeno. Nada disso mudou o que sou. Claro que veio a anistia, mas eu não quis anistia porque seria confessar culpa. Quem tinha que pedir anistia eram eles. Esses malditos que mataram e esfolaram gente (Elke ergue o queixo, sempre leve e ainda sentencia): Nunca fiz muita questão de ficar tocando nesse assunto para não soar como marketing. Tem muita gente que usou os fatos daquela década como marketing, com fins políticos. Não fiz nada partidariamente. Não sou direita, esquerda nem centro. Sou de banda.
Só para se entender, continuas apátrida?
Totalmente. Isso fez, inclusive, com que o Itamar Assunção escrevesse um lindo poema dedicado a mim, chamado “A apátrida de Itabira”. Lindo. Para viajar ao exterior, precisei usar o passaporte amarelo da ONU...
Mas com todas as tuas heranças culturais, tu és a própria ONU...
(Gargalha sonora e longuíssima)
Pode parecer estranho perguntar, mas ficou algo de positivo disso tudo?
Sim. Com todo aquele horror, naquela época a gente sabia onde estava pisando. E hoje? Hoje a gente não sabe onde está o inimigo. Ele pode estar pertinho de nós. Tudo tem o outro lado, meu amor. O problema é só um. Seja em que época for, temos que defender ideologias que venham do coração. A ideologia que sai do coração e fica parada no cérebro nunca venceu batalha nenhuma.
Falando nas ideologias do coração, um passarinho me contou que já viveste um grande amor aqui em Belém. É verdade?
Ah jáaaaa! (Gargalhada). Meu anjo, meus amores são todos explícitos. Foi o Fabiano Coelho. Não sei, nunca mais vi. Uma pessoa muito legal.
Então, o coração de Elke também tem toque de tucupi
Tucupi, açaí, tacacá, tracajá! (Risos) Além disso, tenho mais relações com essa terra fantástica. Quatro dos meus irmãos foram garimpeiros em Serra Pelada. Eu tenho sobrinhos paraenses!
E o que recicla a tua alma?
Aprendizado e gente. Eu invisto tudo o que tenho – e o que não tenho – em conhecimento. E principalmente o conhecimento de gente. Quando chegou em Minas, meu pai fez questão de se afastar dos grupos de imigrantes. Nada de ficar só entre os alemães. Nós nos misturamos lindamente. Aos seis anos, eu já convivia com a comunidade dos negros mineiros. Isso me trouxe um aprendizado enorme sobre a alma humana (Longo suspiro). Sabe... Todo mundo me cobra uma biografia. Mas eu nunca quis. Posso escrever algo como “A Turma da Elke”, um livro no qual eu fale sobre as grandes figuras com quem convivi. Desde Beto Kelner e Nise da Silveira, até um dos fundadores da Falange Vermelha, que conheci. Passando pelo mendigo de rua, por você que está me entrevistando. Por todos. Todas as etnias. Conheço nos monges a santidade que eu tenho e conheço nos bandidos a bandida eu sou.
Quando essa entrevista for lida daqui a uns trinta anos por algum pesquisador, dirias que tivemos a sorte de conviver com uma Elke Maravilha por quê?
Nãaao... Não tenho a pretensão de ser memorável. Eu sou mais um. Faço parte de um todo. Eu não sou eu. Eu sou nós! (Mais uma gargalhada. E essa... inesquecível)
Magazine, uma das mais
emblemáticas artistas do País
fala de vida, política e amor
CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria
Os minutos em que se aguarda a chegada de Elke Maravilha para uma entrevista podem virar argumento de um louco curta metragem. São muitas as imagens que vêm à cabeça: a marca de batom vermelho berrante na bochecha do Chacrinha. Luana Piovani interpretando-a no filme sobre Zuzu Angel. Cabeleiras colossais. Botas que nunca terminam. Acessórios impensáveis.
A dúvida é: que roteiro pode ter um encontro com uma figura tão emblemática? Como registrar uma artista com tantos tons? Filha de russos e alemães, criada na cidade mineira de Itabira, sem uma pátria oficial (leia o texto e entenda), foi presa durante a ditadura, mas libertou tabus. Ela esteve em Belém, na última quarta-feira, para o lançamento da coleção de acessórios do estilista Beto Kelner. O projeto utiliza a mão-de-obra artesanal de comunidades solidárias do Recife. Alguns dos trabalhos de Kelner podem ser vistos em novelas globais.
Nesta entrevista, Elke nos toma no colo com sua gargalhada que parece mãe de muitas vivências e fala. Conta muito. Diz tudo com a seriedade de quem sabe que em todos há um pouco dela e nela há muito de todos nós.
Nascida na Rússia. Criada em Itabira. Modelo de Zuzu Angel. Jurada do Chacrinha. Qual é o segredo maravilhoso para se atravessar tantas fases sem se perder?
(Tudo começa com uma gargalhada enorme): Criança, eu nunca me achei. Por isso, eu nunca me perdi! (O riso grande e farto toma conta do ambiente. Na retomada do fôlego, uma explicação): Só preciso dizer que fui muito mais amiga da Zuzu, que modelo. Cheguei a desfilar para ela. Mas modelo mesmo eu fui de Guilherme Guimarães.
Foste considerada inovadora nas passarelas. Na tua opinião, quais inovações trouxeste?
É verdade. Devo ter trazido inovações. Primeiro que sou um trem diferente mesmo. Sou diferente desde pequena. Tenho uma miscigenação muito grande na minha família. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, meu avô era azerbaijano, minha avó era mongol. Aliás, a primeira vez que eu contei que minha avó era mongol, olharam para mim e disseram: e agora? Será que isso pega? (Nova gargalhada. E ela retoma a seriedade da resposta). Meu pai me cutucou muito: pense, reaja, perceba.
O desfile constante do tempo te incomoda?
De modo algum. Tenho 63 anos. A maioria das pessoas da minha idade fica olhando lá para trás. Aí acabam virando estátuas de sal, né? (Gargalhada) Elas ficam ultrapassadas. O tempo é aqui e agora. O passado foi ótimo. Mas passou. O que eu vivi foi vivido e pronto.
Ficas incomodada em ser tida como um personagem?
Já me incomodou um pouco. Agora não me incomoda nadinha (Risos). Mas realmente muitos acham que eu sou um tipo apenas. Há pouco tempo, a Júlia Rezende, filha de Sérgio Rezende, que fez o filme Zuzu Angel, decidiu realizar um documentário sobre mim. No inicio das filmagens, ela me propôs um desafio: você tiraria isso tudo? (Elke corre as mãos de cima a baixo do corpo, indicando os detalhes todos de sua indumentária única). Aí, eu disse: para você eu tiro. Vai ser como tirar a calcinha. E a gente não tira a calcinha para todo mundo. Mas eu tiro (Risos). E fiz. Acordando mesmo. Sem nada. No final, ela admitiu: não houve diferença nenhuma.
Então, é realmente grande o teu receio de se desapegar da “calcinha” que te torna única...?
É claro, meu amor! Nós, seres humanos, nascemos incompletos e temos que nos completar. E isso é uma sina da nossa espécie. Gato não precisa de banho de loja, precisa? Macaco não precisa de banho de loja. Mas nós precisamos. Nós somos muito feios. Até o mais lindo dos humanos é também muito feio. A gente tem que se melhorar por dentro e por fora.
Agora, Elke, vamos falar um pouquinho sobre a questão da memória. Esse país tem um problema de memória e isso é grave...
Olha, eu não sei, não. Na verdade, é uma faca de dois legumes, como diria Vicente Mateus. A falta de memória é incomodativa, sim, sem dúvida. Mas, por outro lado, há um aspecto positivo: esse país não guarda mágoas. Nós não ficamos naquela de “aí, o que fizeram comigo!”. Os povos que muito cultivam a memória acabam nutrindo muitos ranços.
Mas eu vou insistir nessa questão do lembrar. Talvez muita gente hoje não recorde nem saiba, mas tiveste uma considerável atuação política num período importante da História recente. Por conta dos teus protestos contra o golpe militar, perdeste a cidadania brasileira durante a ditadura. Foste tornada apátrida (pessoa sem pátria oficial). Isso doeu? Ainda dói?
Nãaaaao (E o não se prolonga com musicalidade doce). Claro que não. Meu amor, meu pai foi perseguido por Stalin, na Sibéria, durante seis anos. Eu fiquei presa seis dias na ditadura de Garrastazu Médici. Café pequeno (Gargalhada enorme. E a repetição suave e convicta): Café pequeno. Nada disso mudou o que sou. Claro que veio a anistia, mas eu não quis anistia porque seria confessar culpa. Quem tinha que pedir anistia eram eles. Esses malditos que mataram e esfolaram gente (Elke ergue o queixo, sempre leve e ainda sentencia): Nunca fiz muita questão de ficar tocando nesse assunto para não soar como marketing. Tem muita gente que usou os fatos daquela década como marketing, com fins políticos. Não fiz nada partidariamente. Não sou direita, esquerda nem centro. Sou de banda.
Só para se entender, continuas apátrida?
Totalmente. Isso fez, inclusive, com que o Itamar Assunção escrevesse um lindo poema dedicado a mim, chamado “A apátrida de Itabira”. Lindo. Para viajar ao exterior, precisei usar o passaporte amarelo da ONU...
Mas com todas as tuas heranças culturais, tu és a própria ONU...
(Gargalha sonora e longuíssima)
Pode parecer estranho perguntar, mas ficou algo de positivo disso tudo?
Sim. Com todo aquele horror, naquela época a gente sabia onde estava pisando. E hoje? Hoje a gente não sabe onde está o inimigo. Ele pode estar pertinho de nós. Tudo tem o outro lado, meu amor. O problema é só um. Seja em que época for, temos que defender ideologias que venham do coração. A ideologia que sai do coração e fica parada no cérebro nunca venceu batalha nenhuma.
Falando nas ideologias do coração, um passarinho me contou que já viveste um grande amor aqui em Belém. É verdade?
Ah jáaaaa! (Gargalhada). Meu anjo, meus amores são todos explícitos. Foi o Fabiano Coelho. Não sei, nunca mais vi. Uma pessoa muito legal.
Então, o coração de Elke também tem toque de tucupi
Tucupi, açaí, tacacá, tracajá! (Risos) Além disso, tenho mais relações com essa terra fantástica. Quatro dos meus irmãos foram garimpeiros em Serra Pelada. Eu tenho sobrinhos paraenses!
E o que recicla a tua alma?
Aprendizado e gente. Eu invisto tudo o que tenho – e o que não tenho – em conhecimento. E principalmente o conhecimento de gente. Quando chegou em Minas, meu pai fez questão de se afastar dos grupos de imigrantes. Nada de ficar só entre os alemães. Nós nos misturamos lindamente. Aos seis anos, eu já convivia com a comunidade dos negros mineiros. Isso me trouxe um aprendizado enorme sobre a alma humana (Longo suspiro). Sabe... Todo mundo me cobra uma biografia. Mas eu nunca quis. Posso escrever algo como “A Turma da Elke”, um livro no qual eu fale sobre as grandes figuras com quem convivi. Desde Beto Kelner e Nise da Silveira, até um dos fundadores da Falange Vermelha, que conheci. Passando pelo mendigo de rua, por você que está me entrevistando. Por todos. Todas as etnias. Conheço nos monges a santidade que eu tenho e conheço nos bandidos a bandida eu sou.
Quando essa entrevista for lida daqui a uns trinta anos por algum pesquisador, dirias que tivemos a sorte de conviver com uma Elke Maravilha por quê?
Nãaao... Não tenho a pretensão de ser memorável. Eu sou mais um. Faço parte de um todo. Eu não sou eu. Eu sou nós! (Mais uma gargalhada. E essa... inesquecível)