domingo, 26 de outubro de 2008

AOS OLHOS DA RUA


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 20/10/2008

Músicos, poetas, atores. Vários
artistas transformam a via
pública em palco para exibir
o grande talento da resistência

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

As paredes do camarote são a brisa ou a ventania. As cadeiras da platéia? Podem ser muitas: as poltronas de um ônibus, a grama da praça, os banquinhos da beira-rio. Os espectadores? Os transeuntes todos do agitado dia a dia de uma cidade. O palco? A via pública. Mundo afora – de Pequim a Ananindeua – vários são os artistas que vivem essa realidade: transformar a rua em seu tablado. Mas, afinal, o que motiva esses agentes da criatividade a quebrar preconceitos e barreiras só para chegar onde o povo está? A vontade de desafiar seus limites? Necessidades financeiras?

Antes das possíveis respostas, é interessante explicar: a idéia da produção dessa matéria surgiu de maneira curiosa. Imagine entrar num desses coletivos extremamente lotados e encontrar um jovem tocando violão. Mas não por mero passatempo. A cena era a de um jovem fazendo um pequeno show de voz e violão em plena linha de ônibus urbana.

Pois o fato aconteceu. E o protagonista do episódio foi Marlon Otávio Santos, 22 anos, natural de Castanhal, radicado em Belém há sete meses. O músico usa as notas do idealismo para explicar a opção de se apresentar de forma tão particular: “Quero que me conheçam. Quero mostrar meu talento para o maior número possível de pessoas. Agora me diz: existe lugar melhor para fazer isso do que dentro de um ônibus? Não, né? Ao contrário do que possa parecer, não uso esse recurso por desespero. Estudo, trabalho, ganho meu dinheiro. Adotei essa estratégia porque acho que algum dia alguém vai me ouvir e me dar uma grande oportunidade. Exatamente como essa entrevista está fazendo agora”.

SINAIS

Quando descemos do ônibus dos sonhos e nos detemos diante das encruzilhadas do destino, encontramos os malabaristas Fernanda Morais e Charles Antônio. Ambos com 19 anos e naturais de Manaus. Artistas de formação circense e namorados, eles não têm palco certo. Podem ser encontrados hoje apresentando suas habilidades diante de um semáforo num cruzamento em Belém e semana que vem fazendo a mesma coisa numa esquina no Nordeste. “Escolhemos ser nômades. O dinheiro que ganhamos é para nos alimentar e ajudar em nossas viagens”, explica Charles. Fernanda complementa: “Usamos nossa habilidade artística como passaporte. É o dinheiro que ela nos traz, mesmo que muito pouco na maioria das vezes, que custeia nossas aventuras mundo afora”.

Professor de Português, o ator Márcio Ferreira Mourão conta já teve sua fase de utopias. Atualmente, no entanto, o palco que mais o interessa é o da estabilidade. “Já me apresentei em vários lugares públicos. Já fiz performances e até grandes espetáculos especialmente criados para espaços abertos. No momento, estou ensaiando uma produção que será apresentada nas ruas de cidades do interior. Mas confesso: passei a pensar mais no meu futuro. Apesar de amar minha arte, sei que preciso buscar outras opções de trabalho para me manter. O sonho não nos alimenta nem paga nossas contas”.

CORES

Almas que nascem com os tons da criatividade precisam se expor. Seja onde for. É assim que pensa a artista plástica de 23 anos Naiára Cunha, dona de uma técnica especial e autodidata que mistura o figurativo e colagens O ateliê da paraense é o quintal de sua casa, em Icoaraci. Sua galeria? As orlas. “Costumo levar minhas telas para a orla da Vila Sorriso e para o Ver-o-Rio, em Belém. Tem sempre muita gente circulando nesses lugares. Eu admito que não consigo vender muito, não. Mas sei lá... O legal para mim é mostrar meu trabalho. Se eu sonho em um dia poder viver da minha arte? Claro que sim, né? Mas como eu não tenho muito apoio em casa, vivo batalhando um emprego também. A vida é assim mesmo, né?”.

O muro das dificuldades não representa o menor problema para Alan Maurício, 18 anos. Muito pelo contrário. Serve de tela para sua expressão. Artista da grafitagem, ele só se aborrece com as cores da incompreensão: “A rua é um dos grandes salões dos grafiteiros. Nossa arte se baseia na comunicação visual. E essa comunicação usa as paredes da paisagem urbana como suporte. O que nos irrita muito é que as pessoas ainda confundem nossa ação com o vandalismo dos pichadores. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Só trabalhamos em lugares públicos com expressa autorização. Não somos irresponsáveis”.

Mesmo com as agonias e pressas do cotidiano, muitos sãos os espectadores que valorizam esses personagens. Wanderson Soeiro, 30 anos, tem sua opinião: “Sempre prestei atenção naquele ator que faz estátua viva na saída da Estação das Docas. Acho que esses artistas são verdadeiros brasileiros que fazem seus trabalhos para sobreviverem e terem uma vida digna”. Maristela Nunes, 43 anos, ressalta: “Eu dou total apoio. Sou fã, por exemplo, de manifestações como o Auto do Círio que fazem das avenidas uma grande casa de espetáculos. Sou fã dos artistas de rua”.

Voltamos a subir num ônibus. Desta vez para encontrar um poeta. Aurélio Pena, 47 anos, vende nos coletivos da cidade brochuras com seus versos. Indagado sobre o que mais o motiva a se manter nessa lida, ele encerra com seus versos a viagem dessa matéria pelas paisagens do desafio: “Faço arte para quem quiser me aplaudir / na esquina, na praça, no calçadão / Faço arte para quem sabe chorar ou sorrir / Em qualquer lugar, faço arte para quem tem coração”.

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