sábado, 15 de novembro de 2008

O DESENHISTA DO ETERNO ENCANTO



JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 15/11/2008

Aos 92 anos, o cenógrafo e
figurinista Nilson Penna é
lenda das artes brasileiras

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Entenda o primeiro parágrafo desta matéria como uma bilheteria. Leia estas primeiras palavras como se elas fossem tíquetes, ingressos que permitem acesso a um espetáculo humano. Um show de vida. Tome essa página de jornal como a sala desse grande espetáculo. Procure um bom assento entre uma letra e outra e acomode-se. Daqui a algumas frases se abrirão cortinas para um paraense que se tornou mestre do teatro brasileiro. Um nortista que fez do mundo seu norte e, assim, se vestiu com os figurinos do sonho e da realização. Você conhece Nilson Penna? Então, preste atenção. A campa soou. As lembranças estão entrando no palco. Vamos assistir.

“Aprendi a respeitar a arte como precioso canal de relacionamento humano”, é com esta fala que nosso protagonista inicia sua performance neste texto. Filho do fundador do Clube do Remo, ele nasceu no dia 12 de fevereiro de 1916, na fazenda Livramento, Ilha de Marajó. Hoje, com 92 anos, há décadas radicado no Rio, Nilson é simplesmente uma lenda. Trabalhou como ator, bailarino, cenógrafo, figurinista, pintor, decorador e crítico de dança do Jornal do Brasil. Está catalogado em importantes enciclopédias nacionais e internacionais, participou de duas Bienais de São Paulo e foi assessor cultural federal no Ministério da Cultura na época de Pascoal Carlos Magno. Foi amigo íntimo de Bidú Sayão e Carmem Miranda. Riu e dançou com Judy Garland. Criou figurinos para titãs como Paulo Autran, Tônia Carrero e Márilia Pêra.

O mestre esteve recentemente em Belém. Voltou à terra natal para receber justíssima homenagem na programação do Fida, realizado por Clara Pinto. O regresso tirou das coxias a emoção. Pôs novamente sob o canhão de luz o bem-querer por seu berço. “Fiquei muito tocado com a iniciativa de Clara. Esta homenagem me fez rever lugares da minha vida que me trazem lindas lembranças”, conta o artista. Entre os traços que mais recolorem a afetividade de Nilson, está, como não podia deixar de ser, um templo para a arte em Belém. “Iniciei minha carreira aos 10 anos de idade, no Theatro da Paz, fazendo o papel de Lyzette em Monsieur Le Corbot et Leonard de La Fontaine”.

INSPIRAÇÕES

Em sua marca no centro do palco desta entrevista exclusiva ao Magazine, sempre elegante, voz suave, o ator de muitas conquistas vai tracejando mais e mais recordações. Usa o lápis da saudade, o esfuminho da delicadeza. Redesenha sua história. “Tive como fonte inspiradora Isadora Duncan, que via nos livros da biblioteca de meus pais. Ficava apaixonado por sua força e vontade de liberdade. Esta palavra, aliás, muito tem a ver comigo, pois é a palavra chave do meu signo, aquário”.

Das ilustrações da imaginação às páginas da realidade bastaram os passos de quem sempre soube coreografar seus caminhos. Sobre a relação próxima que teve com Carmem Miranda, Nilson pinta um quadro fascinante; “Assisti a estréia dela moçinha, no Cassino da Urca, aonde ia quase todas as noites aplaudi-la. Tornei-me amigo dela e de sua irmã, Aurora Miranda. Cheguei a ir à sua casa no Rio, perto do Cassino, e no seu apartamento em Nova Iorque”. Aproveita e faz um desabafo: “Quando foi inaugurado, aqui no Rio, o Museu Carmem Miranda, fui convidado para fazer a exposição das suas coisas. Desenhei dezoito manequins para o evento e depois roubaram tudo. Uma lástima”.

UM ATO CHAMADO BIDU SAYÃO

No libreto desse espetáculo humano, há um ato que merece narrativa especial: a longa e intensa amizade do artista com Bidú Sayão. Foram 50 anos de cumplicidades. “Conheci Bidú em 1937, quando ela foi dar um concerto no Theatro da Paz. Para a apresentação, decorei o palco com flores e plantei nos fundos duas árvores de acácia, deixando o local como se fosse um jardim. Bidú, depois do ensaio, perguntou quem tinha feito aquela decoração tão bonita e mandou me chamar, pois queria me conhecer. Daí nos tornamos amigos íntimos”. Nilson guarda consigo relíquias relacionadas à diva: “Tenho muitas cartas dela. Freqüentei sua casa no Mayne e a recebia em jantares no meu apartamento. Foi ela quem me incentivou a sair de Belém para aperfeiçoar meu talento”.

Solto no mundo das memórias, vai desenhando folhas e mais folhas nas quais surgem outros nomes colossais: “Conheci Cecília Meireles, Di Cavalcanti, que me desenhou, Carlos Drummond de Andrade, Juscelino Kubitscheck, Edith Piaf, Igor Stravinsky, Jean Cocteau, Dercy Gonçalves, Cacilda Becker, Fernando Bujones, Rudolf Nureyev, Margot Fonteyn, entre tantos outros. Todos me deram mais inspiração e mais cultura”.

Da platéia em que o entrevistador acabou se transformando vem a pergunta: como foi, afinal, essa história de dançar com Judy Garland? “Foi numa recepção após uma gloriosa récita de Bidú Sayão no Hollywood Ball, em Los Angeles. Judy Garland estava lá e nos conhecemos por intermédio de Bidú. Por termos ficado na mesma mesa, dancei e ri muito com a estrela, que me lembro de ser simpática e espirituosa”.

Na verdade, puro espírito de inspiração é Nilson. Muitas cenas, muitos personagens, muitos cenários. Um ser-espetáculo certamente. Terminada sua apresentação nesta matéria – pequeno monólogo dentro de um enredo que mereceria óperas – o artista aguarda por aplausos. É hora, portanto, de nos levantarmos das poltronas do esquecimento para batermos palmas. Demoradas palmas. Afinal, são 92 anos de realizações. O protagonista agradece, comovido: “Continuo criando todos os dias. No desenho e na pintura. E afirmo que o teatro me torna um homem que faz parte de uma arte que contém todas as artes”.

sábado, 8 de novembro de 2008

QUANDO UM CISNE NOS SOLTA DE NÓS


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 08/11/2008

OPINIÃO
Na sua terceira
semana em cartaz,
peça do Cuíra
mexe com tabus

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

O que leva alguém a abrir seus armários, tirar dali todos os trajes que lhe escondem os segredos, vestir-se com os silêncios impostos pelas hipocrisias sociais e rumar para o teatro? Que teatro? O Teatro Cuíra, que transforma a arte em seu ponto numa das esquinas da Riachuelo, no centro de Belém. O que faz com que alguém se sente na platéia do espetáculo ali apresentado e comece a sentir-se nu cena a cena? Talvez as asas quebradas por baixo do que ainda não se conseguiu tirar dos armários? Talvez a sensação de estar longe dos ninhos da tolerância?

Todas essas dúvidas parecem se acomodar ao lado do público que vem conferindo o espetáculo “Quando a Sorte te Solta Um Cisne na Noite”, que tem sessões hoje, às 21h, e amanhã, às 20h. Premiado no concorrido edital nacional Myriam Muniz, da Funarte, com dramaturgia de Edyr Augusto e direção de Wlad Lima e Karine Jansen, o espetáculo chega a sua terceira semana em cartaz mantendo uma provocativa rotina: abrir as gaiolas das polêmicas do universo homossexual masculino e libertar, noite afora, as mais diversas opiniões.

Na primeira abordagem da reportagem, Miguel Lopes hesitou. O entrevistado em potencial tinha ido ver o “Cisne”, mas achou que talvez não fosse prudente se manifestar publicamente. É recém divorciado. Faz questão de frisar sua heterossexualidade. Mas a pergunta era tão simples. Limitava-se a: quais reflexões o espetáculo te trouxe? Após a resistência, a resposta também simples: “A peça me fez rir e me fez pensar. Fiquei conhecendo situações do universo gay que eu realmente ignorava”.

“O primeiro fator que tem movido os espectadores a virem para o Cuíra ver a peça é mesmo a curiosidade”, explica Karine Jansen. Mas a diretora percebe muitos aspectos entre as plumas do que voa para além do palco: “Precisamos admitir que temos uma cultura gay muito forte aqui em Belém. Isso é cada vez mais evidente. Ao lado desses elementos, há também o fato de que, no final das contas, a peça gera identificações. Mesmo o público hetero se identifica. Vivemos numa época em que cada vez mais os corpos são construídos não só pela natureza, e sim pelo desejo que eles podem gerar. As inúmeras turmas de musculação que existem por ai comprovam o que digo. A verdade é que somos de um tempo em que a identidade sexual anda muito misturada”.

INTERPRETAÇÕES NUAS

O que também se mistura à emoção da platéia é o tom quase confessional da montagem. A peça propõe uma sucessão de atuações-depoimentos que vão arrancando mais e mais os trapos que cobrem muitos pudores. Intérprete de um dos monólogos mais tocantes do espetáculo, o ator e visagista Nelson Borges tem lágrimas misturadas a sua maquiagem no término da apresentação, enquanto conta: “Minha fala é a de um transexual que sonha em mudar de sexo. Construir esta cena foi realmente muito difícil para mim. Quando eu soube que teria que me expor, ficar nu, relutei um pouco. No final, vi que era verdade algo que Wlad e Karine me falaram ao longo dos ensaios. A platéia fica muito mais nua que eu”. Borges percebeu a relevância disso de forma especial: “Tenho um irmão extremamente machista que veio me assistir. No final, ele me abraçou inicialmente de maneira tímida. Depois me abraçou mais forte e chorou muito”. Karine complementa: “Esta cena que se passou com o Borges cerca todo o espetáculo. A peça tem ajudado nas negociações familiares sobre a questão. Vemos, nas cadeiras, filhos com suas mães, com seus pais. Famílias inteiras. Isso é muito bom”.

DESAFIOS ÍNTIMOS

É muito bom igualmente para o enriquecimento do fazer teatral, conforme explica o ator André Mardock: “Precisei buscar entender melhor o universo gay. Foi um desafio particular mesmo. Fiquei temeroso. Foi difícil. Mas como teatro cura, o processo fluiu. Tratar desse assunto pode machucar, porém pode mudar conceitos”. Para Paulo Marat, a superação também foi uma colega de cena: “Essa era uma esfera que eu realmente não conhecia. Sentimentos que eu não dominava. Justamente por isso tem sido um exercício maravilhoso”. Com apenas 19 anos, o jovem ator Ícaro Gaya é mais um que sobrevoa o contentamento: “É bom saber que muita gente sai do teatro impressionada com a sinceridade dos textos. A idéia é essa”.

Para Karine Jansen, é fundamental afastar do lago do isolamento tudo o que a ave do preconceito representa: “A sociedade hoje organiza um sistema de exclusão dos assuntos ligados à sexualidade. Isso precisa mudar para que possamos discutir temas como o travestismo infantil, por exemplo. O Pará é um imenso exportador de meninos travestis, conforme matérias do próprio Liberal estão mostrando. Temos que trazer tudo isso para a cena”. Encerrada a apresentação deste novo projeto do Cuíra, vem uma certa necessidade de recompor o figurino que cerca a alma. Vem também a pergunta: aplaudir ou não aplaudir? Bem, se o Cisne te soltar na noite e fizer tua garganta ficar presa, então aplauda. Porque aplaudir é chamar os deuses para ver.

LEMBRAR PARA NUNCA MORRER



JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 02/11/2008
O dia 02 de novembro traz ao cartaz
e à pauta a poética certeza de que
o fim da existência física pode ser
apenas uma cena recriada pelo talento

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Quando questionado sobre as razões que o levam a gastar tanto dinheiro com sua artista preferida, o paraense Ronaldo Mesquita não hesita em responder: “Paixão. Faço tudo para ficar um pouquinho mais perto dela. Invisto minhas economias sem pestanejar. Compro passagem de ônibus ou de avião. Pago hospedagem em bons hotéis. Vou atrás da minha amada cantora. Ela merece esse meu empenho”. A amada cantora em questão? Acredite: Clara Nunes. Não. Você não está lendo uma matéria antiga. Fique certo de que esta não é uma reportagem feita à época em que a diva da MPB ainda era viva. O fato é que, para Ronaldo, de algum modo – mesmo diante dos limites do irreversível – Clara continua lindamente viva.

Todo ano, nessa época do ano – sempre que o período de férias permite, é bem verdade –, o funcionário público arruma suas malas e parte para o Rio. Hospeda-se na Cinelândia e cumpre um ritual de carinho rigorosamente igual ao do tiete que vai ao show. O palco, no entanto, é o cemitério de São João Batista, em Botafogo, onde a eterna intérprete de Morena de Angola deita-se em camarim de sereno descanso. Os presentes que sempre leva são simbólicos: flores para perfumar a lembrança e velas para manter aceso o brilho de Clara. Algo de morbidez em tudo isso? De forma alguma, defende Mesquita: “Para fãs como eu, os ídolos não morrem. Nunca. Jamais”.

Hoje é, sem dúvida, o dia ideal para se tocar no assunto. Os livros abrem suas páginas, os teatros descortinam seus palcos, os discos tocam notas raras, as telas recolorem o talento. Tudo para afirmar: quem transforma a vida em arte consegue o milagre de atravessar todos os tempos. “Os grandes artistas não morrem. Isso para mim é um fato”, afirma o produtor Geraldo Vasconcelos. “Ouço os CDs de Maysa, de Elis e tenho essa convicção. É como se elas estivessem ao meu lado. Quando me emociono com suas interpretações, digo para mim mesmo: elas permanecem”.

RENASCIMENTO

O estudante de jornalismo Arthur Castro vai além. Ele acredita que o talento de ontem é tão perpétuo que consegue mesmo renascer nos talentos de hoje: “Os grandes artistas se tornam fundamentais. Por isso viram referências para outras gerações. Maysa, Elis e Clara Nunes comprovam isso. Escuto atualmente Rita Ribeiro e sinto nela uma discípula da Clara. Não no que tange às vozes. Falo do amor pela temática afro-brasileira. Com relação à Maysa... Nossa, acho que todas rendem tributo a ela de algum modo. A própria Elis foi uma sucessora dela no quesito rainha da fossa. A gravação para Debaixo da Porta é exemplo do que falo”.

Juntando-se a todo esse coro da capela do bem-querer, o ator Flávio Furtado – membro da Cia. de Teatro Madalenas – opina: “As personalidades da arte que não estão mais fisicamente entre nós, conseguem se manter no plano da memória emotiva, afetiva e até espiritual porque mexem com nosso imaginário. O artista vive uma vida comum, porém cheia de glamour. E nós, como meros mortais que somos, gostaríamos de viver pelo menos quinze minutos dessa fama”.

O escritor Marcelo Marat, por sua vez, é logo taxativo: “A arte é a única saída para esse mundo de mediocridades. A maioria das pessoas já está morta antes de morrer. Os artistas, como seres inconformados, transcendem isso. Van Gogh, por exemplo. Ou Baudelaire. Ou Pessoa com seus heterônimos. São seres que sofrem por conhecerem o absurdo e a tragédia de viver”.

DESTINOS

Alguns artistas se mostram tão senhores da eternidade que chegam a provocar arrepios. Parecem realmente saber que tudo tem um aspecto transitório, porém fatalista. Entre as estrofes da literatura produzida no Pará, o poeta que ilustra esse mistério é Mário Faustino. “Alguns biógrafos e pesquisadores apontam na obra dele o que se assemelha a uma assombrosa premonição sobre sua própria morte”, explica a voraz leitora Carmem Nunes. Faustino faleceu com 32 anos, em novembro de 1962, num acidente aéreo no Peru. Para ilustrar o que disse, ela abre o livro “O Homem e Sua Hora” – único lançado pelo autor – e lê um trecho de poema escrito por Mário antes de sua trágica partida: “Atrai-me ao despudor da luz esquerda / Ao beco de agonia onde me espreita / A morte espacial que me ilumina. / Sinto que o mês presente me assassina”. Comovida, Carmem complementa: “Nao é impressionante? Para mim, ele continua vivo. Aqui. Nas minhas mãos. Não só dentro dessa publicação (acaricia a obra), mas dentro do meu coração”.

Ainda no território das letras, a história do poeta icoaraciense Antônio Tavernard – cujo centenário foi comemorado no dia 10 de outubro – também cria belas rimas entre a arte e a superação das despedidas. “Aos dezoito anos, ele foi diagnosticado com hanseníase. Isso na década de 30. Ou seja, foi uma sentença de morte”, relata a professora de português Luiza Cavalcante. “O belo, no entanto, foi que aquele rapaz transformou toda sua dor em poesia. Ele usou a intensidade da agonia para criar trabalhos eternos. Mesmo tendo sido vencido pela doença cedo, Tavernard ainda vive graças aos seus escritos”. Uma mostra disso? Seus versos: “Tenho a vida do mar / Tenho a alma do mar”.

Talvez a memória seja como o mar citado pelo escritor. Sobre estas ondas, os barcos da recordação. Nestes barcos, os artistas. Então, que fim dar para essa reportagem? Que tal pensar que não há fim. Que, de algum modo, tudo pode ser sempre reescrito, outra vez encenado, de novo cantado? No palco que nos cerca. Em algum palco além. Ao telefone, do Rio de Janeiro, Ronaldo Mesquita avisa que não poderá mais se estender na entrevista porque chega a hora de ir aplaudir Clara Nunes. E arremata: “Se ela ainda merece? Evidente que sim. Os argentinos costumam dizer que, mesmo falecido há décadas, Carlos Gardel é uma lenda tão forte que canta cada vez melhor. Pois Clara também. Clara Nunes canta cada vez melhor”.


LUXARDO, CÂMERA... AÇÃO!



Matéria publicada no
CADERNO MAGAZINE
De O Liberal
Em 01/11/2008

Centenário de nascimento do
cineasta Líbero Luxardo reajusta
as lentes de várias opiniões sobre
o legado deste pioneiro do audiovisual

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

O set já está preparado. E ele tem como ambientação e objetos de cena o instigante contraste entre o verde e a urbanidade amazônica de décadas passadas. A luz já está afinada. A apurada e escaldante luz solar dos desafios e da inventividade. É bom checar o áudio. Sim ele também está aberto. E traz vozes do povo, vozes da intelectualidade, vozes da política, vozes da mata.

O set está preparado. A cadeira do diretor, no entanto, está vazia. Nela se lê o nome Líbero Luxardo. Considerado um dos grandes pioneiros da história do cinema nacional – especialmente dos registros cinematográficos na Amazônia - Líbero, se vivo fosse, bateria, este ano, a claquete de seu centenário. Cem anos absolutamente vivos, mesmo no escurinho das salas do patrimônio cultural. Cem anos que projetam um legado que não pára de procurar telas para ser exibido.

O set está preparado. A cadeira está vazia. Mas sempre plena de memória. Então, nesta atemporal cadeira de diretor vamos fazer sentar alguns dos atores que hoje preservam o legado deste incomum cineasta. Vamos fazê-los sentar diante das lentes desta reportagem e filmar, com as letras, cenas de lembranças, opiniões e críticas. O set está preparado. Silêncio na leitura. Câmera, ação... Luz. Lux. Luxardo.

“Libero foi o primeiro a lançar um longa-metragem de produção local. O clássico Um Dia Qualquer, de 1962. Paulista de nascimento, fez cinema em Mato Grosso e descobriu a Amazônia em 1939. Fixou residência em Belém, montou um estúdio na avenida Nazaré, planejou um longa em 1941, que se chamaria Amanhã nos Encontraremos, mas a dificuldade de se obter filme negativo em tempo de guerra afastou o projeto”, ressalta o pesquisador e cinéfilo Pedro Veriano, primeiro a aceitar o convite para gravar suas considerações nessa reportagem. Somamos uma importante edição ao seu depoimento: “Ele acabava fazendo tudo: roteiro, produção, direção, montagem, assistência de fotografia e som. Chegou a despedir dois diretores de fotografia famosos quando da filmagem de Um Dia Qualquer. Só quem o entendia, na área técnica, era o paraense e amigo particular dele, Fernando Melo”.

CORTA PARA...

Close nas considerações do cineasta paraense Januário Guedes: “Convivi com o Líbero logo no início da minha carreira, quando eu ainda fazia filmes com super oito. Embora tenha enfrentado uma considerável dificuldade para fazer a transição entre o cinema mudo e o cinema falado, o Luxardo criou algo relevante: uma ficção que acaba servindo de testemunho documental de outras épocas da cidade. Ele registrou de forma importante as paisagens físicas da capital e do interior, em seu tempo”.

Numa fusão que nos traz de volta a Veriano, temos outro interessante enquadramento sobre a questão da problemática técnica: “É claro que ele não queria fazer um cinema com linguagem especifica. Queria um cinema acadêmico que fosse compreendido pelos espectadores comuns. Sua escola era realmente a da fase de transição entre cinema o mudo e o sonoro. Ficava aborrecido quando as dificuldades impediam a concretização de detalhes imaginados nos roteiros, nos quais as falas reproduziam um conceito primitivo de cinema. Muitas das falas eram declamadas e não havia a chance de som direto”.

Hora de fazer um rápido zoom sobre as opiniões que a nova geração do audiovisual paraense registra sobre Luxardo. Trazemos, assim, para o set o jovem cineasta e produtor João Inácio: “Este homem que se dedicou a fazer filmes em Belém foi o primeiro a realizar grandes investidas na produção local. Ele é um marco e um exemplo para todos que amam cinema. Sua história nos permite acreditar na real possibilidade de fazermos ficção de longa na cidade. Além de tudo, ele nos ensinou que o papel do governo é fundamental nessa investida”.

NOVO CORTE...

Um imaginário movimento de câmera nos leva a uma importante locação da biografia de Líbero: as cenas que protagonizou no ambiente político de sua época, conforme relata o pesquisador José Carneiro: “Ele chegou ao Pará por causa de seu interesse como cineasta. E aqui começou sua estreita ligação com Magalhães Barata. Fazia documentários sobre o governo do líder do PSD. Esses documentários, raros, ainda existem por ai, suponho. Depois de algum tempo, Luxardo foi cooptado por Barata, que o alçou a deputado federal. Com a queda do PSD, em 1964, via golpe militar, Libero passou a se dedicar integralmente à sua visão de Amazônia e ao seu sonho de cineasta”.

O enquadramento outra vez se abre para Pedro Veriano: “No final das contas, Libero está na história do cinema brasileiro como um dos membros dos ciclos regionais, ao lado de Alexandre Wulfes e Humberto Mauro. Ele era conhecido no meio, por isso conseguia que atores famosos, como Rodolfo Arena, viessem filmar no Pará. O que antes era execrado pela critica, como Um Dia Qualquer, hoje é louvado como uma exposição histórica”.

E é o take raro de tamanha história que alimenta as muitas homenagens que esse artista começará a receber. Uma das principais será rodada pelo Museu da Imagem e do Som, que realizará na sala Líbero Luxardo, entre os dias 5 e 9 de novembro, uma série de ações comemorativas: “Temos a missão de resguardar e difundir a memória paraense, tanto visual quanto sonora. Líbero Luxardo realizou mais de meia dúzia de produções de filmes de longa metragem, institucionais e cinejornais aqui na região. É, portanto, muito importante difundir as obras e a vida deste cineasta para as futuras gerações, que hoje mal têm contato com a história cinematográfica nacional”, ressalta Paula Macedo, diretora do MIS.

Após toda essa panorâmica, temos um plano fechado sobre um súbito riso de Januário Guedes, enquanto frisa: “Falar no Líbero me faz pensar em algo que, no final das contas, é verdade. Cinema é coisa que atrai sonhadores, visionários. A história do Luxardo prova isso. Ele chegou a ser dono de cartório e perdeu tudo, morreu pobre porque investiu o que tinha e o que não tinha na ânsia por filmar”.

SUB

Ainda uma última tomada

Antes de deixar subirem os créditos dessa matéria, uma última tomada. As cenas de um enredo afetivo. Líbero Luxardo foi casado com a célebre poeta paraense Adalcinda Camarão. A união teve como fruto um filho: Tom. Naquela que talvez tenha sido sua última entrevista, concedida a esse repórter em maio de 2000, Adalcinda também se pôs diante das lentes da lembrança e deixou gravados seus sentimentos. Sobre o primeiro encontro entre os dois, acontecido na redação da revista “A Semana”, quando ela tinha apenas dezesseis anos, disse: “Foi um encontro casual. Eu costumava freqüentar a redação, cantava nas rodinhas de violão que eles faziam. Naquele dia, eu tinha ido buscar um magazine e nos encontramos”.

A cena final da longa história que interpretaram... A cena final não foi assistida pela poeta. Quando Líbero morreu, num dia de finados, em 1980, vítima de um câncer de próstata que ele insistia em tratar como mera infecção urinária... Quando Líbero morreu, Adalcinda e o filho viviam no exterior. Sobre o fato de não ter conseguido acompanhar o enterro, ela contou: “Eu estava nos Estados Unidos e ele aqui no Brasil. Não tive tempo sequer de vê-lo pela última vez. Quando cheguei, o sepultamento já havia acontecido”.

Para o companheiro que, em um dia qualquer, transformou a Amazônia em set eterno, Adalcinda Camarão escreveu: “Vem dormir na maqueira dos meus olhos, meu amor / estou sobre a sombra da saudade / com medo que o luar / venha me descobrir toda de branco”.

domingo, 26 de outubro de 2008

AS MARAVILHAS DE SER ELKE


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 26/10/2008

Em entrevista exclusiva ao
Magazine, uma das mais
emblemáticas artistas do País
fala de vida, política e amor

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Os minutos em que se aguarda a chegada de Elke Maravilha para uma entrevista podem virar argumento de um louco curta metragem. São muitas as imagens que vêm à cabeça: a marca de batom vermelho berrante na bochecha do Chacrinha. Luana Piovani interpretando-a no filme sobre Zuzu Angel. Cabeleiras colossais. Botas que nunca terminam. Acessórios impensáveis.

A dúvida é: que roteiro pode ter um encontro com uma figura tão emblemática? Como registrar uma artista com tantos tons? Filha de russos e alemães, criada na cidade mineira de Itabira, sem uma pátria oficial (leia o texto e entenda), foi presa durante a ditadura, mas libertou tabus. Ela esteve em Belém, na última quarta-feira, para o lançamento da coleção de acessórios do estilista Beto Kelner. O projeto utiliza a mão-de-obra artesanal de comunidades solidárias do Recife. Alguns dos trabalhos de Kelner podem ser vistos em novelas globais.

Nesta entrevista, Elke nos toma no colo com sua gargalhada que parece mãe de muitas vivências e fala. Conta muito. Diz tudo com a seriedade de quem sabe que em todos há um pouco dela e nela há muito de todos nós.


Nascida na Rússia. Criada em Itabira. Modelo de Zuzu Angel. Jurada do Chacrinha. Qual é o segredo maravilhoso para se atravessar tantas fases sem se perder?
(Tudo começa com uma gargalhada enorme): Criança, eu nunca me achei. Por isso, eu nunca me perdi! (O riso grande e farto toma conta do ambiente. Na retomada do fôlego, uma explicação): Só preciso dizer que fui muito mais amiga da Zuzu, que modelo. Cheguei a desfilar para ela. Mas modelo mesmo eu fui de Guilherme Guimarães.

Foste considerada inovadora nas passarelas. Na tua opinião, quais inovações trouxeste?
É verdade. Devo ter trazido inovações. Primeiro que sou um trem diferente mesmo. Sou diferente desde pequena. Tenho uma miscigenação muito grande na minha família. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, meu avô era azerbaijano, minha avó era mongol. Aliás, a primeira vez que eu contei que minha avó era mongol, olharam para mim e disseram: e agora? Será que isso pega? (Nova gargalhada. E ela retoma a seriedade da resposta). Meu pai me cutucou muito: pense, reaja, perceba.

O desfile constante do tempo te incomoda?
De modo algum. Tenho 63 anos. A maioria das pessoas da minha idade fica olhando lá para trás. Aí acabam virando estátuas de sal, né? (Gargalhada) Elas ficam ultrapassadas. O tempo é aqui e agora. O passado foi ótimo. Mas passou. O que eu vivi foi vivido e pronto.

Ficas incomodada em ser tida como um personagem?
Já me incomodou um pouco. Agora não me incomoda nadinha (Risos). Mas realmente muitos acham que eu sou um tipo apenas. Há pouco tempo, a Júlia Rezende, filha de Sérgio Rezende, que fez o filme Zuzu Angel, decidiu realizar um documentário sobre mim. No inicio das filmagens, ela me propôs um desafio: você tiraria isso tudo? (Elke corre as mãos de cima a baixo do corpo, indicando os detalhes todos de sua indumentária única). Aí, eu disse: para você eu tiro. Vai ser como tirar a calcinha. E a gente não tira a calcinha para todo mundo. Mas eu tiro (Risos). E fiz. Acordando mesmo. Sem nada. No final, ela admitiu: não houve diferença nenhuma.

Então, é realmente grande o teu receio de se desapegar da “calcinha” que te torna única...?
É claro, meu amor! Nós, seres humanos, nascemos incompletos e temos que nos completar. E isso é uma sina da nossa espécie. Gato não precisa de banho de loja, precisa? Macaco não precisa de banho de loja. Mas nós precisamos. Nós somos muito feios. Até o mais lindo dos humanos é também muito feio. A gente tem que se melhorar por dentro e por fora.

Agora, Elke, vamos falar um pouquinho sobre a questão da memória. Esse país tem um problema de memória e isso é grave...
Olha, eu não sei, não. Na verdade, é uma faca de dois legumes, como diria Vicente Mateus. A falta de memória é incomodativa, sim, sem dúvida. Mas, por outro lado, há um aspecto positivo: esse país não guarda mágoas. Nós não ficamos naquela de “aí, o que fizeram comigo!”. Os povos que muito cultivam a memória acabam nutrindo muitos ranços.

Mas eu vou insistir nessa questão do lembrar. Talvez muita gente hoje não recorde nem saiba, mas tiveste uma considerável atuação política num período importante da História recente. Por conta dos teus protestos contra o golpe militar, perdeste a cidadania brasileira durante a ditadura. Foste tornada apátrida (pessoa sem pátria oficial). Isso doeu? Ainda dói?
Nãaaaao (E o não se prolonga com musicalidade doce). Claro que não. Meu amor, meu pai foi perseguido por Stalin, na Sibéria, durante seis anos. Eu fiquei presa seis dias na ditadura de Garrastazu Médici. Café pequeno (Gargalhada enorme. E a repetição suave e convicta): Café pequeno. Nada disso mudou o que sou. Claro que veio a anistia, mas eu não quis anistia porque seria confessar culpa. Quem tinha que pedir anistia eram eles. Esses malditos que mataram e esfolaram gente (Elke ergue o queixo, sempre leve e ainda sentencia): Nunca fiz muita questão de ficar tocando nesse assunto para não soar como marketing. Tem muita gente que usou os fatos daquela década como marketing, com fins políticos. Não fiz nada partidariamente. Não sou direita, esquerda nem centro. Sou de banda.

Só para se entender, continuas apátrida?
Totalmente. Isso fez, inclusive, com que o Itamar Assunção escrevesse um lindo poema dedicado a mim, chamado “A apátrida de Itabira”. Lindo. Para viajar ao exterior, precisei usar o passaporte amarelo da ONU...

Mas com todas as tuas heranças culturais, tu és a própria ONU...
(Gargalha sonora e longuíssima)

Pode parecer estranho perguntar, mas ficou algo de positivo disso tudo?
Sim. Com todo aquele horror, naquela época a gente sabia onde estava pisando. E hoje? Hoje a gente não sabe onde está o inimigo. Ele pode estar pertinho de nós. Tudo tem o outro lado, meu amor. O problema é só um. Seja em que época for, temos que defender ideologias que venham do coração. A ideologia que sai do coração e fica parada no cérebro nunca venceu batalha nenhuma.

Falando nas ideologias do coração, um passarinho me contou que já viveste um grande amor aqui em Belém. É verdade?
Ah jáaaaa! (Gargalhada). Meu anjo, meus amores são todos explícitos. Foi o Fabiano Coelho. Não sei, nunca mais vi. Uma pessoa muito legal.

Então, o coração de Elke também tem toque de tucupi
Tucupi, açaí, tacacá, tracajá! (Risos) Além disso, tenho mais relações com essa terra fantástica. Quatro dos meus irmãos foram garimpeiros em Serra Pelada. Eu tenho sobrinhos paraenses!

E o que recicla a tua alma?
Aprendizado e gente. Eu invisto tudo o que tenho – e o que não tenho – em conhecimento. E principalmente o conhecimento de gente. Quando chegou em Minas, meu pai fez questão de se afastar dos grupos de imigrantes. Nada de ficar só entre os alemães. Nós nos misturamos lindamente. Aos seis anos, eu já convivia com a comunidade dos negros mineiros. Isso me trouxe um aprendizado enorme sobre a alma humana (Longo suspiro). Sabe... Todo mundo me cobra uma biografia. Mas eu nunca quis. Posso escrever algo como “A Turma da Elke”, um livro no qual eu fale sobre as grandes figuras com quem convivi. Desde Beto Kelner e Nise da Silveira, até um dos fundadores da Falange Vermelha, que conheci. Passando pelo mendigo de rua, por você que está me entrevistando. Por todos. Todas as etnias. Conheço nos monges a santidade que eu tenho e conheço nos bandidos a bandida eu sou.

Quando essa entrevista for lida daqui a uns trinta anos por algum pesquisador, dirias que tivemos a sorte de conviver com uma Elke Maravilha por quê?
Nãaao... Não tenho a pretensão de ser memorável. Eu sou mais um. Faço parte de um todo. Eu não sou eu. Eu sou nós! (Mais uma gargalhada. E essa... inesquecível)





UM NOVO HUMOR RASGADO


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 22/10/2008

Nova geração de humoristas
paraenses transforma o caos
em diversão e faz piada até
da sem graça falta de apoio

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Atenção porque o assunto é sério. Vamos falar de gargalhadas. Não, não. O texto não começou equivocado. Poucas coisas são mais sérias hoje em dia que a habilidade de fazer rir. Num país onde o riso ainda pode ser o melhor remédio – mas passa longe dos postos de saúde – e num mundo onde cada vez mais a ironia da crise financeira mata qualquer bom humor, a capacidade de transformar o caos em diversão é artigo de luxo mais valioso que qualquer coisa vinda de Miami. Em Belém, uma nova geração de humoristas resolveu se colocar sobre os holofotes deste desafio e está oferecendo para as platéias toda a seriedade de seu talento. O que eles têm a contar sobre suas lidas pode fazer chorar de rir ou provocar risos para não nos fazer chorar.

"Apesar do riso ser um ingrediente universal, é preciso muito molho de ervas regionais, banho de cheiro e sal grosso para fazer essa arte em Belém, pois é raro se conseguir apoios que valorizem o que é da terra", solta Armando Moraes, uma das revelações locais da comédia. Outro destaque no gênero, Rominho Braga complementa: "Claro que, além do jeitinho brasileiro, nós aqui da terrinha acrescentamos uma pitadinha de tucupi. É essencial para um humorista valorizar de onde veio e, assim, se diferenciar dos demais". Também recém surgido nesta cena, Murilo Couto acrescenta: "Acho que para ser humorista em Belém basta ter vontade porque tema para piada não falta".

Também buscando ocupar seu posto no atual pelotão de abatedores do tédio, Osmar Júlio dispara: “Uma piada, na verdade, só e engraçada se quem a ouve acompanhar o raciocínio de quem conta. Fazer comédia é uma estrada de ida e volta. Não existe a comédia se o público e o comediante não caminham juntos na direção de um pensamento”.

Mas, afinal, a reportagem quer saber: o que deixa um bom humorista com genuíno mau humor? Igor Monteiro transforma a pergunta em oportunidade para exercitar sua veia: "Responder esta pergunta já me deixa de mau humor. Bem... Por mais que eu seja humorista, tenho que pagar contas, levar o lixo para fora, sou casado, tenho uma sogra que me inferniza. Que droga de vida a minha! Vou transformar esse depoimento numa carta de suicídio", diverte-se. Outro novo talento paraense, Anne Fonseca também não perde a oportunidade de buscar o deboche: "Tudo me deixa de mau humor. Maninho, já ouviste falar em TPM? Pois é! E esse calor, gente? Desliga esse sol, por favor! Está derretendo o meu cérebro!".

A FRUTA

Opa, antes que se retire do palco dessa inusitada discussão, vamos pegar Anne pela manga e fazer uma pergunta inevitável. Não, Anne. Não se trata de manga, a fruta. Estamos falando de manga da blusa. Enfim, como pareces ser uma das raras frutas entre os benditos, a questão é: as mulheres humoristas enfrentam alguma dificuldade específica? “Acredito que não. Acho até um campo mais fácil. Digo no meu show que ser mulher já é uma piada. E é mesmo! Somos ótimas, mas ninguém passa mais ridículo que nós. Sempre posso ter material novo. Quando se é mulher, as coisas absurdas simplesmente acontecem!”. Murilo Couto não perde o timming e emenda: “Não sei porque, mas isso me fez lembrar de uma das melhores declarações dos últimos meses: sou sobrinha da Gretchen, funkeira e virgem. Vou fazer um filme pornô, mas continuarei virgem”.

Sim, o absurdo é mesmo a grande matéria-prima desses artistas que vão para o último andar do inusitado só para morar na cobertura do bom astral. E, por mais absurdo que possa parecer, essa matéria terminará sem nenhuma anedota. O desfecho será a fala filosófica de Osmar Júlio: “Ir a um show de humor significa pedir para deixar a vida pessoal de lado e entrar em uma nova realidade, nem que seja por duas, três horas apenas. O humor faz com que você se afaste de seus pensamentos e seja levado para lugares que sua rotina não lhe leva”. Estão vendo só? Rir é mesmo coisa muito séria.

Serviço: Os shows com os humoristas desta matéria podem ser vistos no Clube da Piada Café Teatro. Quinta, sexta e sábado, a partir das 22h. Couvert artístico: R$ 10,00. Informações: (91) 3242-5243.

Rio de Janeiro promove Festival de Humor com concursos nacionais

Entre o riso com açaí e farinha e o riso com açaí e granola, uma boa notícia: de hoje até o dia 23 de novembro, o humor vai tomar conta da capital carioca. A primeira edição do Festival Internacional de Humor do Rio de Janeiro (FIHRJ) lança luzes sobre o humor gráfico e o teatral contemporâneo, por meio de concursos de desenhos e esquetes, exposições, espetáculos e debates. O evento rende justíssimas homenagens a grandes nomes, como Angeli, Laerte e Luís Fernando Veríssimo. “O Festival Internacional de Humor vai mostrar como a vida, apesar de tudo, pode ser muito engraçada. E criativa”, comemora Eliana Caruso, uma das organizadoras do FIHRJ.

Um dos objetivos do evento é mostrar um pouco da arte e do senso de humor brasileiros. A organização quer que o brasileiro tome conhecimento daquilo que está sendo produzido aqui e em outros países no campo do humor. Um dos instrumentos de divulgação deste material será o catálogo do festival. Com 172 páginas, ele trará os vencedores do Prêmio Desenho de Imprensa e também obras dos homenageados da edição. “O Festival quer promover uma grande festa do traço, da palavra, da imagem, no qual o riso se expressa de várias maneiras”, explica Eliana.

CONCURSOS

O Premio Desenho de Imprensa é um concurso voltado aos profissionais que tenham publicado caricaturas, ilustrações e desenhos de humor em veículos de imprensa brasileiros. Diferentemente dos concursos habituais nos salões de humor brasileiros, que buscam divulgar os novos talentos, o Prêmio Desenho de Imprensa destina-se a profissionais atuando com destaque em jornais e revistas. Além das categorias tradicionais de Caricatura, Charge e Cartum, o prêmio apresenta uma nova categoria, que é a Ilustração. Com isto, o concurso abrange também os artistas gráficos que não lidam diretamente com a linguagem do humor e, portanto, não participam habitualmente dos salões.

Os esquetes também contarão com uma especial vitrine na programação. De acordo com os organizadores do projeto, esse gênero de espetáculo tem revelado uma nova geração de talentos. A ser realizado dentro do evento, o Festival de Esquetes terá o papel importante de garantir a renovação deste cenário e será uma das maiores atrações do Festival de Humor, que pretende também abrir espaços para apresentações dos talentos no gênero stand-up comedy. Todas as atividades do Festival serão divulgadas no site http://www.festivalinternacionaldehumor.com/ e no blog http://www.festivaldehumor.blogspot.com/

AOS OLHOS DA RUA


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 20/10/2008

Músicos, poetas, atores. Vários
artistas transformam a via
pública em palco para exibir
o grande talento da resistência

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

As paredes do camarote são a brisa ou a ventania. As cadeiras da platéia? Podem ser muitas: as poltronas de um ônibus, a grama da praça, os banquinhos da beira-rio. Os espectadores? Os transeuntes todos do agitado dia a dia de uma cidade. O palco? A via pública. Mundo afora – de Pequim a Ananindeua – vários são os artistas que vivem essa realidade: transformar a rua em seu tablado. Mas, afinal, o que motiva esses agentes da criatividade a quebrar preconceitos e barreiras só para chegar onde o povo está? A vontade de desafiar seus limites? Necessidades financeiras?

Antes das possíveis respostas, é interessante explicar: a idéia da produção dessa matéria surgiu de maneira curiosa. Imagine entrar num desses coletivos extremamente lotados e encontrar um jovem tocando violão. Mas não por mero passatempo. A cena era a de um jovem fazendo um pequeno show de voz e violão em plena linha de ônibus urbana.

Pois o fato aconteceu. E o protagonista do episódio foi Marlon Otávio Santos, 22 anos, natural de Castanhal, radicado em Belém há sete meses. O músico usa as notas do idealismo para explicar a opção de se apresentar de forma tão particular: “Quero que me conheçam. Quero mostrar meu talento para o maior número possível de pessoas. Agora me diz: existe lugar melhor para fazer isso do que dentro de um ônibus? Não, né? Ao contrário do que possa parecer, não uso esse recurso por desespero. Estudo, trabalho, ganho meu dinheiro. Adotei essa estratégia porque acho que algum dia alguém vai me ouvir e me dar uma grande oportunidade. Exatamente como essa entrevista está fazendo agora”.

SINAIS

Quando descemos do ônibus dos sonhos e nos detemos diante das encruzilhadas do destino, encontramos os malabaristas Fernanda Morais e Charles Antônio. Ambos com 19 anos e naturais de Manaus. Artistas de formação circense e namorados, eles não têm palco certo. Podem ser encontrados hoje apresentando suas habilidades diante de um semáforo num cruzamento em Belém e semana que vem fazendo a mesma coisa numa esquina no Nordeste. “Escolhemos ser nômades. O dinheiro que ganhamos é para nos alimentar e ajudar em nossas viagens”, explica Charles. Fernanda complementa: “Usamos nossa habilidade artística como passaporte. É o dinheiro que ela nos traz, mesmo que muito pouco na maioria das vezes, que custeia nossas aventuras mundo afora”.

Professor de Português, o ator Márcio Ferreira Mourão conta já teve sua fase de utopias. Atualmente, no entanto, o palco que mais o interessa é o da estabilidade. “Já me apresentei em vários lugares públicos. Já fiz performances e até grandes espetáculos especialmente criados para espaços abertos. No momento, estou ensaiando uma produção que será apresentada nas ruas de cidades do interior. Mas confesso: passei a pensar mais no meu futuro. Apesar de amar minha arte, sei que preciso buscar outras opções de trabalho para me manter. O sonho não nos alimenta nem paga nossas contas”.

CORES

Almas que nascem com os tons da criatividade precisam se expor. Seja onde for. É assim que pensa a artista plástica de 23 anos Naiára Cunha, dona de uma técnica especial e autodidata que mistura o figurativo e colagens O ateliê da paraense é o quintal de sua casa, em Icoaraci. Sua galeria? As orlas. “Costumo levar minhas telas para a orla da Vila Sorriso e para o Ver-o-Rio, em Belém. Tem sempre muita gente circulando nesses lugares. Eu admito que não consigo vender muito, não. Mas sei lá... O legal para mim é mostrar meu trabalho. Se eu sonho em um dia poder viver da minha arte? Claro que sim, né? Mas como eu não tenho muito apoio em casa, vivo batalhando um emprego também. A vida é assim mesmo, né?”.

O muro das dificuldades não representa o menor problema para Alan Maurício, 18 anos. Muito pelo contrário. Serve de tela para sua expressão. Artista da grafitagem, ele só se aborrece com as cores da incompreensão: “A rua é um dos grandes salões dos grafiteiros. Nossa arte se baseia na comunicação visual. E essa comunicação usa as paredes da paisagem urbana como suporte. O que nos irrita muito é que as pessoas ainda confundem nossa ação com o vandalismo dos pichadores. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Só trabalhamos em lugares públicos com expressa autorização. Não somos irresponsáveis”.

Mesmo com as agonias e pressas do cotidiano, muitos sãos os espectadores que valorizam esses personagens. Wanderson Soeiro, 30 anos, tem sua opinião: “Sempre prestei atenção naquele ator que faz estátua viva na saída da Estação das Docas. Acho que esses artistas são verdadeiros brasileiros que fazem seus trabalhos para sobreviverem e terem uma vida digna”. Maristela Nunes, 43 anos, ressalta: “Eu dou total apoio. Sou fã, por exemplo, de manifestações como o Auto do Círio que fazem das avenidas uma grande casa de espetáculos. Sou fã dos artistas de rua”.

Voltamos a subir num ônibus. Desta vez para encontrar um poeta. Aurélio Pena, 47 anos, vende nos coletivos da cidade brochuras com seus versos. Indagado sobre o que mais o motiva a se manter nessa lida, ele encerra com seus versos a viagem dessa matéria pelas paisagens do desafio: “Faço arte para quem quiser me aplaudir / na esquina, na praça, no calçadão / Faço arte para quem sabe chorar ou sorrir / Em qualquer lugar, faço arte para quem tem coração”.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

INDEPENDÊNCIA OU ARTE


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 13/10/2008

Artistas estão cada vez
mais livres das amarras
de gravadoras, editoras
e divulgadores. Quem
manda é a platéia!

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Olhe para o horizonte do cenário cultural atual. Olhe com calma. Você consegue enxergar? Vê as bandeirinhas sendo agitadas? Pois bem, às margens nunca plácidas da criatividade, um grito ecoa mais e mais forte. INDEPENDÊNCIA!!! Independência ou morte? Não. Jamais. Todo artista – mesmo o mais dramático – quer criar vidas! O grito que se ouve é: Independência... ou arte!
Sempre carente de incentivos e políticas estruturadas, o terreno cultural brasileiro tem acolhido a explosão do fenômeno da liberdade produtiva. Músicos fazendo sucesso sem a antiga exigência de uma gravadora. Escritores lançando livros sem os grilhões comerciais das editoras. Atores fazendo teatro à custa do próprio suor e das próprias lágrimas. É fácil? Claro que não! Então, é realmente possível sobreviver sem estruturas oficiais? Com a palavra, os heróis deste momento histórico, aqui, na cena paraense.

O produtor cultural Ná Figueiredo, figura importante para esse atual contexto em Belém, começa fazendo um esclarecimento: 'É comum se confundir artista independente com artista alternativo. Na verdade, são coisas distintas. O termo alternativo surgiu na década de oitenta para designar músicos que faziam um som diferente. Artista independente, na minha opinião, é aquele que não está preso a estruturas convencionais. É o caso do cantor que se mantêm sem uma gravadora'. Ná explica ainda que esse movimento tão contemporâneo é resultado de uma conjuntura econômica: 'Com todas as mudanças e crises que temos vivido, o artista precisou se reinventar. Aí surgiu esse nicho. A produção artística independente é agora um nicho de mercado. Muito forte, aliás'.

A tendência é tão viva e imperativa que, ironicamente, toda uma rede estrutural tem sido tecida para manter os que justamente escolhem fugir das redes convencionais. Os independentes já contam com fóruns, inúmeros festivais – bom exemplo disso foi o recente e muito bem sucedido evento realizado na capital paraense pela produtora Se Rasgum -, prêmios como o Dynamite – ao qual concorrem atrações locais como A Euterpia, Madame Saatan e Quaderna, dentre outros – e incontáveis sites, a exemplo do http://palcomp3.cifraclub.terra.com.br/mp3/. Neste endereço é possível acessar um ranking com artistas independentes de cada Estado.

Marisa Brito, vocalista da banda A Euterpia – grupo amado na cena local e hoje radicado em São Paulo para buscar novas vitrines – ressalta: 'Ser independente te dá uma liberdade artística muito maior, já que você não tem obrigação de se moldar para entrar num determinado padrão. Porém, as dificuldades surgem quando você quer realmente viver de música. Porque mesmo não tendo uma gravadora por trás, as pessoas te cobram um rótulo no mercado'. E ela acrescenta: 'Outro ponto que às vezes complica é que atualmente qualquer um pode montar uma banda e jogar na internet. Ganha quem for mais persistente, quem se mostrar mais e não necessariamente quem tem qualidade'.

DISSONANTE

Em meio a toda esta discussão há quem use a voz para entoar certas notas relevantes. É o caso da cantora Ângela Carlos, que está em estúdio finalizando seu novo CD, todo produzido por sua conta e risco: 'Não, eu não gosto de ser independente, pois todo músico que tem um trabalho sério sonha, sim, em ter uma gravadora que possa dar gás ao seu projeto, junto com toda uma equipe de marketing e vendas de shows. E como artista independente, tudo é muito lento'.

Há palcos em que os desafios da independência parecem ainda maiores. O teatro é exatamente um desses tablados. Com mais de vinte anos de carreira, o ator e diretor Paulo Santana dá para o público falas bem questionadoras: 'Acho que na música a coisa da produção independente tem um peso. Nas artes cênicas, tem outro. Na verdade, tudo é bem contraditório. O artista precisa e não precisa de suporte. Temos necessidade de patrocínio, independente do segmento. Hoje, sem isso, não conseguimos erguer uma produção. Mas, por outro lado, o agente cultural deve se construir só. Acho que também tudo passa por uma séria questão política. A Secretaria de Cultura tem obrigação de criar mais e melhores mecanismos de incentivo e gestão do produto cultural'.

LEI DO CAOS

Por entre as páginas da literatura, o enredo é também complexo. Há décadas se dedicando à escrita sem nunca ter contado com uma editora oficial, o poeta Rui do Carmo conta que mesmo os mecanismos já existentes para incentivar a cultura dão vazão a situações difíceis. 'Sempre busco aprovar os meus projetos nas leis de incentivo. Geralmente consigo. Mas há a questão dos patrocinadores. Acabei de perder uma carta de isenção fiscal para meu novo livro, Caso de Trincheira, porque o prazo se esgotou e a promessa de apoio que me fizeram não foi cumprida. É difícil. Muito mesmo'.

Ângela Carlos toma para si o microfone outra vez. Ela precisa desabafar: 'Quero aqui deixar o meu pedido aos empresários desta cidade: tenham mais respeito e cuidado com os artistas da casa. Somos capazes, sim, de chegar ao mercado nacional. E com muita qualidade e competência. Somos um povo musical que sempre levanta a bandeira de sua terra, seja para aplaudir o som, as letras poéticas, o trabalho dos arranjadores, produtores, que não deixam a desejar a ninguém. Por este motivo eu peço: respeitem quando um artista for solicitar a sua parceria para divulgar a sua arte. É sinal de que ele, no mínimo, confia na marca de sua empresa'.

CALYPSO

Entre lutas e revoltas, são notáveis os bons resultados que os independentes têm colhido nos mais variados segmentos. Um dos mais significativos retornos é o apoio do público, razão pela qual produzem. A jovem universitária Danielle Mesquita é uma das paraenses que fazem questão de se colocar na platéia do incentivo: 'Respeito demais os artistas que lutam e persistem sem grandes apoios. Contribuo com minha torcida e carinho. Sou daquelas que vai ao show, que compra o trabalho. Sou fiel mesmo. Sou fã absoluta de grupos como Cravo Carbono e Suzana Flag. Para mim, esses artistas provam que o talento pode criar qualquer base'.

Esse amor e essa fidelidade do público ajudam a consolidar verdadeiros ícones no cenário independente. Um exemplo? A multipoderosa banda Calypso. Você ainda não tinha se perguntado por que a ilustração desta matéria é uma caricatura da insuperável Joelma? Pois saiba: a banda Calypso, hoje, é exemplo máximo em todo mundo de produto cultural que se construiu na esteira do próprio e árduo trabalho. O grupo, nascido aqui no Pará, se transformou em incontestável hit. Tudo na base daquele grito que foi dado lá no início desse texto. Aquele grito que ecoou às margens nunca plácidas da criatividade: INDEPENDÊEEEENCIA!!!

domingo, 12 de outubro de 2008

TODOS QUEREM TRAZER ARTE PARA MARIA


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE

Edição de 12/10/2008
Com ilustração
de Airton Nascimento


ESPECIAL
Artistas de vários
lugares do Estado
contam histórias
de peregrinação

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Regina Maciel Oliveira, 32, sabe que precisa estar com o figurino certo, com a maquiagem correta, com o corpo preparado. Cantora há mais de quinze anos, ela conhece bem as exigências de uma boa performance. Mas todas as preocupações que Regina levou para diante do espelho três semanas antes desta matéria ser escrita não tinham uma casa de espetáculos como destino. Não. O palco para o qual a artista se preparava era o da fé. Todo ano, Regina Oliver – nome artístico – cumpre uma pauta especialíssima em sua vida: ela se dedica a uma verdadeira romaria pessoal de Capanema até Belém para acompanhar o Círio de Nazaré.

Ela divide a viagem em paradas especiais: faz pouso em Castanhal para acompanhar novenas na casa de amigos; chega à Ananindeua para ver a passagem da Santa diante da residência de seus primos e encerra a jornada seguindo a grande procissão de hoje. Regina é um dos vários artistas peregrinos que partem dos mais diversos pontos do Estado para estar na capital paraense neste segundo domingo de outubro. Artistas que, nesta época do ano, fazem questão de apresentar o talento da devoção. 'Minha arte é um presente que ganhei da Virgem. Tenho que me encontrar com ela na quadra nazarena. Caso contrário, não me renovo. Eu me inspiro em nomes como a Leila Pinheiro que, mesmo vivendo fora, sempre dão um jeito de estar junto de Nossa Senhora neste período', explica. Ao longo desta matéria, vamos seguir os passos de Regina até sua chegada a Belém.

MIRITI

Enquanto isso, mergulhemos na história do ribeirinho Jorge Nonato Matos, 43 anos, morador de Barcarena. Artesão desde menino, ele afirma: 'Se eu não levar todo santo ano meus trabalhos de miriti para Nossa Senhora abençoar, posso até perder minha criatividade'. Nonato diz amar seu compromisso anual. Ele passa dois meses se dedicando a produzir peças diferenciadas e, em outubro, pega a estrada para a capital. Não vem para ficar em pontos específicos. Em cada temporada escolhe um canto da cidade para expor suas criações. E garante: 'Venho, acima de tudo, para ver minha Santinha passar em algum trecho das procissões. Não venho só porque quero vender. Se eu tiver que ganhar dinheiro, ganho. Se ninguém comprar nada, não me importo. Faço os trabalhos para agradar nossa padroeira'.

Voltemos à Regina. Já instalada em Castanhal, ela se deixa tomar pelo choro ao lembrar: 'Há exatamente cinco anos, fui acometida por um problema sério na laringe. Tudo indicava que fosse algo realmente difícil de tratar. Não pensei duas vezes. Eu me agarrei com Nossa Senhora e implorei por minha saúde. Ela me atendeu. Para agradecer, todo ano venho de onde for para reverenciá-la'. A cantora diz que a novena na casa dos amigos é o momento de refletir e pedir não só por ela, mas por todos de quem gosta: 'É a hora de conversar baixinho com a Mãe', conta. No dia seguinte, ela segue para Ananindeua. Mas os detalhes dessa nova parada vêm mais à frente.

VERSOS

A distância não é tão grande assim. Apenas coisa de uma hora. No entanto, para Josivaldo Castro, 19 anos, os quilômetros entre Mosqueiro e Belém representam a distância entre a expectativa e a lágrima de felicidade. O poeta quase anônimo – só a família e alguns amigos conhecem seu dom – faz do mês de outubro páginas significativas para sua inspiração. Com o intuito de agradecer uma graça alcançada há três anos, ele escreve poemas para Nossa Senhora de Nazaré e vem entregá-los para a Santa no dia do Círio. 'Sempre dou um jeito de deixar meus escritos no Carro das Promessas. É minha forma singela de dizer obrigado. Sempre choro quando cumpro essa missão'.

Já em Ananindeua, a cantora Regina chora e perde a voz. A passagem da berlinda em frente à casa de seus primos é um momento que reconstrói sua alma. Após muito engolir em seco, ela finalmente consegue dizer algumas palavras: 'É ela que alimenta o espírito de todos os artistas dessa terra, sabias? É ela!'.

NOTAS

São cinqüenta anos dedicados às teclas. Nadir Mendonça, 64 anos, é pianista desde muito menina. A origem do enlace com o instrumento foi, por incrível que pareça, a religiosidade: 'Minha mãe quase me perde durante a gravidez. Então, ela fez uma jura para Nossa Senhora: se eu sobrevivesse, ela me faria aprender piano para um dia eu passar a tocar hinos para a família em todo Círio. E assim tem sido desde os meus 14'. Hoje, radicada em São Paulo, a musicista diz que não pode ficar um ano sequer sem voltar à terra natal nesta época. Entre as obrigações, ainda estão as apresentações camerísticas para os familiares: 'Sinceramente não sei onde eu estaria hoje sem a fé que tenho na Virgem'.

E onde está Regina neste momento? Misturada aos milhões de devotos que se tornam artistas também. Afinal, quem passa o ano inteiro ensaiando as emoções do Círio e sempre as reestréia neste domingo só pode ser artista também. Agora, feliz, a cantora de Capanema é mais uma em meio ao palco do encantamento. É mais um olhar comovido. Mais um coração transbordado. Mais uma voz embargada a entoar: 'Vós sois o Lírio Mimoso'. Aplausos, portanto. Aplausos para Regina, para Nonato, para Josivaldo, para Nadir. Aplausos para os peregrinos que são personagens únicos desse grande espetáculo de crenças.

sábado, 11 de outubro de 2008

UM NOVO CAPÍTULO PARA DIRA PAES


JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE
Edição de 04/10/2008

EXCLUSIVO
Atriz lança seu
primeiro livro
e revela a emoção
da experiência

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria

Era precisamente nove horas da noite quando a reportagem entrou em contato com Dira Paes, na última quinta-feira. Inevitável o receio. Abordar a esta hora uma artista com uma agenda tão agitada? Enquanto os números do celular eram discados, um pensamento insistente: ela deve estar exausta. Basta fazer um rápido balanço: a paraense está filmando a nova película de Tizuka Yamasaki; está vivendo todas as polêmicas e apaixonadas repercussões de “A festa da menina morta” (primeiro filme dirigido por Mateus Nachtergaele, no qual faz uma especialíssima participação); está se preparando para voltar às telas da Globo depois do sucesso com a inesquecível Solineuza (o retorno acontecerá com a personagem Norma, na próxima novela das oito, Caminho das Índias, escrita por Glória Perez); está envolvida, ao lado do produtor Emanoel Freitas, com a realização da nova edição do Festival de Belém do Cinema Brasileiro (que acontecerá na capital paraense de 27 de outubro a 02 de novembro), é mãe recentíssima de Inácio, acabou de reformar a casa e ainda decidiu se lançar como escritora infanto-juvenil.

Não é pouca coisa. Mas, enfim, alguém com tantas ocupações talvez nem durma. Nove horas da noite pode ser apenas mais um momento essencial na jornada. E Dira atende ao telefone como quem realmente ultrapassa os tempos. É possível sentir na voz a doçura do riso. A vontade de partilhar suas vivências. Sim, ela quer contar. Quer dizer tudo sobre o lançamento de “Menina flor e o boto”, sua corajosa investida no mundo das letras. A obra será lançada hoje, na capital carioca, das 16h às 20h, no Pólo de Pensamento Contemporâneo. No dia 7, os autógrafos acontecem em São Paulo. No final das contas, uma conclusão: Dira não dorme e faz sonhar. Nessa entrevista exclusiva que ela concedeu ao Magazine é possível entender isso:

Um livro infanto-juvenil, Dira? Como é isso? Por que a decisão de se tornar escritora a essa altura da tua carreira?

DIRA PAES: Bem, esse é um trabalho da Língua Geral. Em março, essa editora lançou o projeto Mama África. Quatro escritores e quatro artistas plásticos africanos foram convidados a se unirem para criar livros sobre as lendas de seu país. Obras voltadas para o público infanto-juvenil. A editora decidiu lançar aqui entre nós a segunda versão da iniciativa, batizada de Mãe Brasil. Uma série para reavivar nossas lendas indígenas. Tive a honra de ser escolhida para escrever uma das histórias, com ilustrações do PP Condurú. Quando recebi o convite, logo me lembrei de algo relatado por minha mãe, dona Flor: ela dizia que minha avó tinha visto o boto transformado em homem. E eu sempre achei isso muito próximo da realidade. Nunca contestei. Então, aceitei o desafio de escrever. Sabendo que era rigorosamente um desafio. Eu precisava disso. Tomei a lenda do boto como pano de fundo e decidiu recontar o universo da infância da minha mãe. Um ambiente fascinante de criança que teve o rio como sua rua.

E como foi esse enlace com o PP Condurú?

DIRA PAES: Foi maravilhoso. O resultado muito me honra. É uma experiência única poder dialogar com o universo infanto-juvenil ao lado de um artista da importância e representatividade do PP.

Mas afinal o que as páginas do livro têm a sussurrar para as crianças e jovens que vão ler?

DIRA PAES: Elas vão se encontrar com a floresta amazônica. Sinto que essa obra representa um novo caminho para mim. Uma nova porta que se abre. A Amazônia ainda precisa ser desbravada pelos brasileiros. A Amazônia é imensamente rica e as crianças precisam descobrir isso.

Pois é, por que tanto persiste essa impressão de que o Brasil não nos conhece? Por que ainda há tanta resistência em se entender melhor a cultura da região Norte? O que falta para...

DIRA PAES (A vontade de responder é tanta, que a atriz interrompe, pede mil desculpas e, sempre com o traço de sorriso na voz, vai dizendo): Falta intercâmbio. As informações divulgadas sobre a região são muito superficiais. Falta mais vivência amazônica para os brasileiros. Qualquer pessoa que respire às margens de um rio da Amazônia... qualquer pessoa que tenha essa vivência muda para sempre. “Menina Flor e o boto” é um livro que tenta traduzir isso que é tão difícil de traduzir. Costumo dizer que a única experiência que deve se comparar a conhecer a Amazônia é conhecer a lua.

Então, não há como negar: a menina de Abaetetuba se manifesta vivamente na escritora Dira Paes...

DIRA PAES: Na verdade, ao contrário do que se pensa e se divulga, eu tive uma infância bastante urbana. Mas também vivi muito a magia do interior. Passei muitas férias em Abaetetuba, Capanema. Minhas raízes são muito evidentes. E isso sempre me trouxe muita felicidade. Tenho orgulho de ser quem sou. De ter as origens que tenho.

E a maternidade? Ela deu algum colorido a mais a tua alma de artista?

DIRA PAES (breve silêncio, mesmo a impessoalidade da ligação telefônica deixa escapar a emoção. Vem, por fim, a resposta): A maternidade justificou todo o tempo que vivi até hoje. Penso que da mesma forma que as pessoas precisam conhecer a Amazônia para entender a Mãe Natureza, há mulheres, como eu, que precisam viver a maternidade para se entenderem melhor.

Uma mudança brusca de assunto: o filme “A festa da menina morta” está repercutindo bastante. Causou alvoroço em Cannes. Gerou críticas apaixonadas no Festival de Cinema do Rio. Qual a importância desse trabalho para ti?

DIRA PAES: O Mateus (Nachtergaele) é um artista único, em carne viva, daqueles que rompem com as fronteiras. É uma sorte imensa tê-lo entre nós. Quando soube do projeto, pedi imediatamente para fazer um papel. E estou muito feliz. O filme encanta pela riqueza, pelo requinte. A sinergia é ímpar. O filme é duro. E mostra nossa Amazônia com uma grandeza sem igual.

Bem, seria imperdoável não perguntar: e a novela das oito? Quando seguir por Caminhos da Índia, que trilhas novas vai tomar a tua carreira?

DIRA PAES: A novela deve começar em novembro. Farei uma personagem chamada Norma, que só aparece mais para frente. Bem, estou há oito anos longe das novelas. Tenho que confessar: estou ansiosa. Uma ansiedade boa. Quero reviver a experiência. A novela é um formato com características próprias. Não é fácil. Quero fazer esse trabalho com muita dedicação para que o público mate a saudade. Especialmente o público infantil que tanto me acarinhou através da Solineuza. Público que também abraço através do lançamento de “Menina flor e o boto”.

UM POUCO MAIS

A autora
Dira Paes nasceu em Abaetetuba, no Pará. É notável atriz de cinema, minisséries, telenovelas e teatro. Menina Flor e o Boto marca sua estréia na literatura e o início de uma promissora aventura artística.

O ilustrador
P.P. Condurú nasceu em Belém. É uma das principais referências artísticas do Norte do Brasil. Participou de várias exposições coletivas e mostras, expondo telas que dialogam com a cultura e as riquezas naturais da região Amazônica.

A coleção
A coleção Mãe Brasil pretende resgatar lendas indígenas, recriadas por alguns dos mais importantes artistas brasileiros. Livros que juntam as artes plásticas à literatura e a tradição à modernidade. Livros para as crianças, mas também para os seus pais. Livros para colecionar.

OS CEM ANOS DE UM POETA SEM PAR




JORNAL O LIBERAL
CADERNO MAGAZINE

Edição de 10/10/2008

PARA LEMBRAR
Centenário do autor
Antônio Tavernard
gera debate sobre
memória cultural

CARLOS CORREIA SANTOS

Da Editoria

'O que esperar de um poeta que explica: 'Há sempre no caminho alguém que espera / e na distância alguém que não vem mais / Mas a esperança é como a primavera / que até nas pedras faz florir rosais'? Como explicar um artista que define: 'a vida é louca / dura o que dura um riso numa boca'? Um poeta assim não se define, não se explica. Porém, um poeta assim espera. Espera por reconhecimento. Aguarda por aplausos e respeito.

Exatamente no dia de hoje completaria cem anos o autor dos versos que abrem essa matéria: Antônio de Nazareth Frazão Tavernard. Ou, simplesmente, Antônio Tavernard. Um dos mais significativos escritores brasileiros nascidos no Pará. Além de criador de estrofes raras, foi contista, cronista, letrista e dramaturgo. Produção que lhe rendeu o título de patrono da recente XII Feira Pan-Amazônica do Livro. Entre outras grandes criações, são de sua autoria a letra do hino do Clube do Remo e as letras das canções 'Foi Boto Sinhá' e 'Matinta Pereira', feitas em parceria com Waldemar Henrique. Apesar de toda essa grandeza, Tavernard ainda aguarda. Sua obra exige maior aclamação pública, maior atenção das esferas acadêmicas e do próprio ciclo literário. A casa em que nasceu, em Icoaraci, está atualmente em ruínas e serve de guarida para grupos de assaltantes. Para os estudiosos do escritor, Tony – como ele era afetivamente conhecido – ainda parece vagar pelo caminho que separa as pedras dos rosais.

'Tavernard prova que não devemos falar em autor paraense. Ele está diretamente ligado ao melhor das letras brasileiras. Ele é um grande escritor nacional', defende a professora de Literatura e também poeta, Walkíria das Mercês. E ela acrescenta: 'Trata-se de um artista com valores muito próprios. Ele não deve nada a nomes como Raul Bopp, por exemplo'. Outro professor de Literatura Brasileira que faz questão de expressar sua admiração é Guilherme Júnior, da UVA: 'Estamos falando de um criador que se ligou a várias estéticas. Ele viveu o modernismo na Amazônia, mas bebeu da fonte do simbolismo. É possível sentir relações de sua escrita com nomes como Augusto dos Anjos. Não bastasse tudo isso, Tavernard foi pós-modernista'.

DRAMA

Um dos caminhos mais comuns para se falar da trajetória de Antônio Tavernard é o que leva ao drama pessoal que o artista viveu. Aos 18, foi diagnosticado com hanseníase. Pediu para que a família construísse um rancho nos fundos de sua residência – situada numa das esquinas do cruzamento entre a Generalíssimo e a Conselheiro – e ali se dedicou vivamente à escrita, sabendo que seu destino era a morte precoce. O que, de fato, aconteceu em 1936. Para Walkíria, a agonia íntima do escritor não tem nenhuma relação com a intensidade de seu talento: 'Ele já era um grande poeta antes de ficar enfermo. A doença trouxe um comprometimento físico apenas. Sua poeticidade foi maior que tudo'.

Outra professora de Literatura apaixonada pelo bardo nortista é Sheila Maués. Ela afirma: 'Tavernard é um artista da palavra que permanece sempre novidade. É, sobretudo, um experimentador de novas possibilidades poéticas, como também o foram os grandes nomes das artes de sua época. Como homem lúcido que foi, não permaneceu quieto e resignado enquanto o mundo inteiro ou seu universo particular decaíam'. Guilherme Júnior complementa: 'Uma das principais habilidades dele foi projetar uma visão lírica e poética da Amazônia. É possível afirmar que ele incluiu a região amazônica no cenário nacional, assim como fizeram Mário e Oswald de Andrade'.

RESGATES

O peso da obra do poeta lhe garantiu na última Feira do Livro ciclos de debates e a criação de uma exposição especial que permanecerá aberta ao público paraense na Biblioteca Pública Arthur Viana, do Centur. 'Iniciativas que já começam a surtir efeitos. Temos informações sobre vários trabalhos acadêmicos de graduação e pós-graduação que estão se desenvolvendo a partir das palestras da Pan-Amazônica', conta Sheila. Entretanto, a maioria dos olhares que têm se voltado para o poeta são mesmo os do desconhecimento. Claudiane Guimarães, 25 anos, esteve na Pan-Amazônica e confessa seu espanto: nunca tinha ouvido falar sobre o escritor. 'Estou fazendo curso de Letras e afirmo: não conheci Tavernard nem na escola, nem na universidade. Acho lamentável'.

Walkíria das Mercês não poupa palavras sobre a questão: 'Precisamos acabar com essa acomodação e com esse preconceito que nos afasta dos nossos patrimônios culturais. Temos que exigir mais ações dos órgãos governamentais, das universidades, das academias de letras'. Guilherme Júnior faz mais alertas: 'Precisamos produzir estudos sobre a recepção da obra dele. Outra coisa fundamental: além de lutarmos pela republicação de seus livros, precisamos ter mais acesso a materiais raros sobre o autor, como os que estão na Academia Paraense de Letras'.

As páginas da esfera administrativa, contudo, se abrem para dar algumas boas notícias. O diretor cultural da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), Carlos Henrique Gonçalves adianta alguns projetos para a preservação do legado de Tony: 'Esse ano, iniciamos um processo destinado a revelar a importância da obra do Tavernard. Os festejos em torno do centenário são importantes. É maravilhoso saber que meio milhão de pessoas esteve em contato com seu universo na Feira do Livro. Com relação à questão do patrimônio físico, já iniciamos as obras de escoramento das paredes da casa em que ele nasceu. Além disso, devemos fazer a edição histórica de duas de suas obras: Fêmea e Almas Tropicais'.

Assim, esperam os leitores. Porque há sempre nos caminhos do esquecimento leitores que esperam por talentos que fazem brotar rosais em pedra e provam que a vida, mesmo durando o riso de uma boca, pode ter a eternidade da emoção. Esperam os leitores por um poema que parece tão justo: respeito para Antônio Tavernard. 'Artistas como ele, são importantes porque transformam o panorama da literatura de um lugar e transformam o tempo com sua criatividade', arremata Sheila Maués.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

OUTRAS CENAS, OUTROS ATOS...



Abaixo, matéria publicada na capa do caderno MAGAZINE, de O Liberal, em 30 de setembro de 2008.

ESPECIAL
Teatro paraense
assiste o surgimento
de novos artistas
em várias frentes

CARLOS CORREIA SANTOS
Da Editoria / Magazine - O Liberal

Antes, bem antes do famoso “ser ou não ser”, o teatro era. O teatro é. O teatro sempre será. A arte teatral é contestadora, é revolucionária, é inquietante, é inovadora. Então, não há como duvidar: quando esse gênero se reconstrói, o lugar comum se descortina e a criatividade ganha a chance de renascer. O movimento teatral paraense parece estar vivendo um desses momentos de reinvenção. São vários os recém surgidos grupos, produtores, atores, diretores e dramaturgos que se mostram decididos a protagonizar outras cenas, outros atos para a cultura local.

Mas como todo exercício artístico exige solidez para ser justificável, entra em foco a pergunta: o que, de fato, esses novos grupos têm a apresentar? Quem são e o que realmente querem esses novos personagens dos nossos tablados?

“Quero que as pessoas se sintam menos solitárias. Decidi me dedicar ao teatro aqui para tentar fazer o público um pouquinho mais feliz. Uma tarefa dificílima e arrogante”, polemiza o jovem ator, diretor e dramaturgo Saulo Sisnando. Autor dos espetáculos “Útero”, “Pop Porn” e “Cartas para Ninguém” – recentemente montados na cidade com considerável repercussão e nenhum patrocínio oficial - , o artista se assume um empreendedor da atual geração: “A simples escolha de trabalhar com teatro aqui já me torna um empreendedor. Porque é muito difícil. Só que é difícil trabalhar com teatro em qualquer lugar. Tenho amigos no Rio e em São Paulo que estão ralando do mesmo jeito. Sei que até na Europa e nos EUA é complicado viver de teatro. Mas o importante é que faço o que gosto, do jeito que gosto e acredito”.

CORAÇÃO

A expressão corporal, a fala, tudo nas performances do jovem dramaturgo e diretor Haroldo França reinterpreta o sentimento. Para o artista, criador do grupo “Teatro em Cores”, investir tão cedo nas trincheiras da encenação significa colocar o coração no palco. “Tudo se resume ao amor. Meu grupo é formado por gente apaixonada. Nosso maior objetivo é tocar as pessoas com a arte. Ficamos muito felizes quando ouvimos o depoimento de algum espectador que vem nos contar que se sentiu mexido por nosso trabalho. Nesse momento dizemos: vale a pena. E muito”, afirma Haroldo após realizar uma temporada experimental de sua peça “Jogo de Sete”. A produção ganhou sessão especial para ser vista e gerar críticas que possam melhorar a obra posteriormente.

Já os integrantes do recém fundado grupo Teatro do Ofício não fazem cena. Eles afirmam sem medo que estão passando por uma fase única. Quando ainda viviam a preocupação de legalizar a trupe, conquistaram uma interessante vitória. Os jovens artistas tiveram o projeto de montagem do espetáculo infanto-juvenil “Uma Flor para Linda Flora” selecionado no Edital Estadual de Fomento às Artes Cênicas, promovido pela Secretaria de Cultura do Pará, no início do semestre. Agora querem se dedicar à experimentação: “O surgimento da companhia foi conseqüência de anos de parceria em outros grupos, além de uma simultânea insatisfação e ansiedade naturais de experimentar uma trajetória autoral”, explica um dos membros, o ator e produtor Stéfano Paixão.

EDUCAÇÃO

Como há sempre mais coisas entre o céu e a terra do que suspeita nossa fã filosofia, num outro viés de interesses, há quem aposte numa concepção que se mostra cada vez mais oportuna: a arte-educação. “Queremos educar. Resolvemos montar nosso grupo para tratar de temas como meio ambiente e o folclore”, revela a atriz Jaque Tedesco, integrante da novíssima companhia “Porta de Entrada”, que há pouco levou ao cartaz o espetáculo “Super Heróis da Floresta”. E ela explica que sua turma decidiu investir no aspecto estrutural para vencer o desafio de se manter no cenário local: “Contamos com aproximadamente 16 pessoas, entre administração, direção, atores e dançarinos. O diferencial do grupo é que somos quase todos pedagogos”

Mas o compromisso de educar através da arte assume feições mais sutis entre os novos agentes teatrais da cidade. E, ainda assim, grande é a luta para receber aplausos. Envolvido há pouquíssimos meses com o desafio de erguer a estrutura de uma peça, o jovem ator e recente produtor Márcio Mourão decidiu apostar nas comemorações do centenário do poeta Antônio Tavernard para encarar a missão de trazer à ribalta o espetáculo “Duelo do Poeta com Sua Alma de Belo”, inspirado na vida e na obra do escritor nascido em Icoaraci. Apesar do projeto também ter sido selecionado no Edital da Secult e ter estreado na última Feira Pan-Amazônica do Livro, muitos têm sido os obstáculos: “As coisas são mais difíceis para quem está iniciando. E eu nem falo da questão do patrocínio que passa longe, longe de nós. Falo mesmo questão dos apoios. Salvo raras exceções, os apoiadores tendem a desconfiar dos novatos. Eles acham, muitas vezes equivocadamente, que não oferecemos possibilidade de retorno”.

Também representante do atual cenário cultural, a produtora Tati Brito vai além: “Acredito que, pelo fato do teatro feito aqui ainda estar em fase de formação de platéia e de público pagante, sobreviver disso ainda fica difícil. Só conseguimos sobreviver com a ajuda das leis de incentivo. É problemático saber que as pessoas reclamam de pagar vinte reais para ver uma peça no espaço Cuíra, por exemplo. Principalmente quando sabemos que peças vindas de fora fazem lotar o Da Paz”

CONVICÇÕES

Em meio a todo esse conflito, o texto dado por Jaque Tedesco acaba se tornando relevante: “As dificuldades são enormes mesmo. Enormes. Mas o fato de sermos independentes nos faz aprender muita coisa”. Carlos Henrique Vieira, cenógrafo do grupo Ofício, ressalta seu ponto de vista: “O lado positivo das rupturas é a oportunidade de reciclar as gerações de artistas teatrais, de injetar fôlego novo. Cabe a nós, é claro, essa responsabilidade. Não podemos voltar atrás. Fazer teatro é uma paixão e um vício”.

Entre um ato e outro de todo este cenário, a preocupação em agradar acaba se tornando dramaturgia pouco interessante para muitos. É o caso de Saulo Sisnando que afirma ser fiel somente às suas propostas: “Eu acho que estou indo contra a maré do teatro local. Creio que faço um teatro que os ditos entendidos julgam de péssima qualidade. Mas, por outro lado, tenho a certeza de que muitas pessoas falam mal por puro preconceito. Já recebi boas criticas de pessoas bastante talentosas”. Haroldo França reforça o coro da falta de aceitação, porém não se abate: “Sinto que parte da velha guarda tem dificuldade em aceitar os diretores novos, principalmente os mais jovens. Mas acho compreensível. Afinal, o desconhecido costuma causar estranhamento”.
Mesmo sob as seculares máscaras do drama e da comédia, os novos personagens do teatro paraense usam a cara e a coragem para encenar seus sonhos, seus ideais, suas doces loucuras. Na platéia está um público cada vez mais necessitado de arte original, corajosa, desafiadora. Eis a questão... Ser ou não ser público para aplaudir de pé o empenho destes artistas? A resposta? Bem, a resposta só será conhecida quando se fecharem às cortinas do futuro.

sábado, 27 de setembro de 2008

DUELO VOLTA À CENA


TONY (a voz tomada pela emoção): Quando um poeta é esquecido... o mundo se torna menos mundo... Menos vale o ser, menos vale o entender, menos vale o respirar... Quando um poeta é esquecido, a sensibilidade esquece-se das horas. Atrasa-se em chegar nos sorrisos, apressa-se em chegar nas lágrimas... Tamanho é o intempo!... Quando um poeta é esquecido, a angústia se lembra de como acordam os sonhos só para fazê-los voltar a dormir... Meu Deus, quando um poeta é esquecido as palavras começam a querer se deitar... E assim vão desfalecendo... DELICADEZA, INTESIDADE, CRENÇA, DISCERNIMENTO, ÓDIO... AMOR... As palavras todas começam a fenecer... As pessoas começam a não saber mais o que dizer umas para as outras... Quando um poeta é esquecido, todos esquecem que em todos há um poeta.


(Texto e foto da segunda montagem de DUELO DO POETA COM SUA ALMA DE BELO, de Carlos Correia Santos. Direção: Dionelpho Júnior. Com Vaneza Oliveira e Luiz Carlos Girard. Produção: Márcio Mourão. Espetáculo destacado com Menção Honrosa no Concurso da Academia Paraense de Letras de 2005. Espetáculo vencedor do Edital Estadual de Fomento às Artes Cênicas 2008. Espetáculo selecionado no Edital de Pautas da Secult 2008. Obra incluída no Catálogo da Dramaturgia Brasileira, de Maria Hellena Khurner, iniciativa vencedora do Prêmio Shell 2007)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

E-MAIL DIRA PAES


Carlos querido,

tenho acompanhado mesmo que de longe
sua trajetória, agora brindada com esse
lindo prêmio, e seu talento é inegável.
Vou ler o Velas com certeza.

Parabénsss!!!!

Bjsssss,

Dira

sábado, 20 de setembro de 2008

VELAS NA TAPERA - PRÊMIO DALCÍDIO JURANDIR

Aqui, partilho com todos um trecho do meu primeiro romance: "Velas na Tapera". A obra acaba de vencer o importantíssimo prêmio Dalcídio Jurandir. Concurso de nível nacional, criado para homenagear o centenário de um dos mais importantes nomes da Literatura Amazônica. O livro será editado e amplamente divulgado. Eis as minhas "Velas"...

PARTE SEGUNDA

Trecho XXIII


O sol. Aceso. Vela sazonal no céu azul. A acender memórias e sensações. Foi como se o sol mais forte ficasse quando Rita serenou seus passos descalços em frente ao grandioso prédio da antiga serraria. A luz do dia clareou distâncias nos olhos da mãe viúva-órfã. Distâncias no tempo. Antes de prosseguir com o que fora ali fazer, correu um demorado apreciar pela fachada do lugar. O silêncio da ruína. Era possível enxergar silêncios no lento desfazer-se exposto pelo prédio. E seu lento apreciar foi deslizando pelos detalhes todos. A estrutura ampla e alta, dona de contornos geométricos. Inteira fabricada em Michigan e transportada peça por peça para ser montada naquelas paragens... Tudo transformado em mutismo... Tudo... Deixou o esquadrinhar fluir para a ainda imponente caixa d´água que ficava a alguns metros. Trouxe-o de volta para a construção a sua frente...

Respirou fundo.

Por fim, iniciou o resgate que decidira dar a si mesma. Num mover-se quase imaginário, entrou na abandoada serraria. Primeiro aquilo. Naturalmente aquilo: o vazio de um interior estagnado. Caminhou, caminhou. Passou pelos restos de maquinário. Deslizou a ponta dos dedos por equipamentos inertes, a um triz da ferrugem. Esquivou-se languidamente de sobras de vigas e restos de tábuas. Caminhou e caminhou pelo mudo presente de um rico passado...

O passado... Um longo migrar de ar pelas narinas.... O passado...

Era hora de trazer para o presente o passado...

Fechou os olhos lentamente.

E quando os reabriu...

A pleno pique funcionava a serraria do projeto Ford. Era preciso manter a produção de quarenta e cinco mil tábuas por mês. Era preciso. Talvez os homens todos que ali arrastavam horas e mais horas de trabalho sequer soubessem, mas suavam sua labuta na maior serraria da América Latina de então. A madeira gritando no corte preciso graças ao que parecia milagre: energia elétrica no meio da mata. Homens do mundo inteiro. Jornada intensa carregada nos ombros de homens do mundo inteiro. Entre eles, compenetrado, movimentos todos doados ao produzir... O texano Duncan Miller... As retinas de Rita cristalizaram-se... Era Duncan... Outra vez como sempre: inteiro perfeição para seus olhos... (...)

E-MAIL DE LAURO GÓES




Abaixo, e-mail enviado para mim pelo grande ator e diretor Lauro Góes sobre a premiação do meu romance “Velas na Tapera”:

Carlos,

Pela leitura do pequeno trecho do romance, assegurei-me do cabal merecimento do prêmio com que foi distinguido. Você não acha que estão faltando paraenses na atual Academia Brasileira de Letras? Orgulho-me do compatriota, e, hoje, posso expandir a alma com alegria, dizendo: orgulho-me por tê-lo como amigo!

Um grande abraço, Lauro Góes


SOBRE LAURO GÓES

Ator e diretor carioca. Começou a trabalhar como ator profissional em 1966, chamado por Gianni Ratto, para o seu primeiro papel, na peça “Rastro Atrás” ao lado de Leonardo Vilar, Iracema de Alencar, Rodolfo Arena, Vanda Lacerda, e do também jornalista Renato Machado. Em seguida, Lauro estudou Direito por dois anos e parou. Em 1971, interpretou Camões, no Teatro Municipal, por ocasião do Centenário da publicação dos Lusíadas, com direção de Paulo Afonso Grisoli. Em 1972, foi para a Europa, estudar teatro e cinema. Acabou optando pelo primeiro. Em Paris, faz o Cours Rene Simon e trabalhou em “As moscas” de Jean Paul Sartre, que assistiu a estréia e ficou impressionado com o seu desempenho. Posteriormente, foi o ator principal do dramatique “Ici, peteutre”, onde fez o papel de um português, que falava francês fluente.

Em Londres, foi locutor da BBC e na Itália, fez teatro de rua, na Piazza Navona, num espetáculo baseado em antropafogia, no verão de 75. Em 76, voltou ao Brasil e fez um teste para interpretar o Frei Virgilio em “Pecado Capital”. Foi aprovado pelo Daniel Filho e iniciou sua carreira no veículo, onde fez Casos Especiais, Casos Verdade, várias novelas “ O feijão e o sonho”, “A sombra dos laranjais”, “Gina”, “Nina”, “Coração de Estudante”, os seriados “ Chiquinha Gonzaga” na Globo e “A família Byte” na TVE. Também teve um programa com Lidia Brondi e gravou vários episódios do “Sítio do Picapau Amarelo”. Trabalhou ainda na TV Manchete e na Record.Em seu cartão de visitas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, está escrito assim: Prof. Dr. Antonio Lauro de O. Góes - Assessor para Eventos Especiais - Fórum de Ciência e Cultura, o que traduzindo, significa, Lauro Góes, um homem dedicado permanentemente a sabedoria e ao teatro. Fundador em 1980, na Faculdade de Letras, do 1º Grupo de Teatro Universitário. Bacharel em Letras, com mestrado em Comunicação e Doutorado, novamente, em Letras. Autor de teses sobre dramaturgia. A de mestrado, “Criação coletiva Tá na Rua/Amir Haddad”. A de doutorado, “A adaptação como fundamento de teatro”.

São vinte e três anos, trabalhando como professor em literatura dramática.Seus últimos trabalhos em TV foram o pai do personagem Danilo, do Murilio Benício em “Chocolate com Pimenta” e, em 2005, quando fez uma participação em "A Lua Me Disse". Em 2007, Lauro faz participação em "Paraíso Tropical", de Gilberto Braga e Ricardo Linhares.

2006 Bicho do Mato-Rede Record-Adamastor
2005 A lua me disse - Inácio
2004 Começar de Novo - Romualdo
2004 Chocolate com Pimenta - Leonardo
1999 Chiquinha Gonzaga - Viton
1996 O Campeão (Bandeirantes) - Zé Eduardo
1978 Gina - Zeca
1978 O pulo do gato - Ricardo
1977 Nina - Clemente
1977 À sombra dos laranjais - Cláudio Lemos
1976 O feijão e o sonho - Rubinho
1975 Pecado Capital - Virgílio Lisboa